30.4.21

Arrasada por vagas tumultuosas de trabalho e, nos intervalos, distraída com futilidades, apanhou-me de surpresa o desabrochar de Isabela. Ontem eram brotos, hoje oito flores de escancarada doçura, desenhadas com um rigor que mais espanta quanto mais em detalhe se lhes tira as medidas e aprecia os ângulos. Incapaz de suportar sozinha o peso de tanto talento, Isabela apoia o braço num velho tamborete que eu, tendo por costume e defeito antecipar tragédias, ali coloquei à disposição de sua excelência. Com isso, fica o tamborete a parecer luxuosamente estofado porque Isabela derrama sobre ele os seus folhos de veludo branco, mais ricos ainda com o oiro e rubi de uns labelos perfeitos. Que esperta é. Ao invés de se enamorar de gatos pretos sem nome nem residência fixa, resigna-se ao ombro de um velho tamborete. Apático, mas ao menos de confiança. E o tamborete, encostado por falta de serventia, ganha em troca a mais bela de todas as oportunidades que já teve na vida. Ora, se ambos saem valorizados não vejo como há de esta história acabar mal, por mais que vasculhe as sombras férteis do meu pessimismo.

25.4.21

A liberdade, de todos os valores o que aparenta mais fibra e firmeza, palavrões na boca, braços no ar, armas na mão, está na verdade sempre por um fio, mal notando como dá os pulsos a grilhões que toma por necessidade ou vantagem. Nem o amor, que é o amor, reputado de cego e ingénuo e sempre distraído do caminho a olhar para o céu, nem o amor é abalroado por tantos equívocos.

23.4.21

A Flor,

num dos poucos blogs em que confio e onde vou de joelhos, diz que os títulos fazem falta e eu sinto o dedo tocar-me na ferida, baixo a cabeça como as crianças que asnearam mas não tenciono emendar-me. Um título não é só uma trabalheira em que dificilmente vou além da mediocridade. Um título é como uma coroa posta à cabeça da obra que se supõe digna e se dá por acabada. Portanto, adorna ou encerra e nenhuma dessas hipóteses me interessa quando escrevo. 

22.4.21

Sentada na soleira da papelaria, de vestido cor-de-rosa como um leque ao seu redor, Alice parece uma florzinha que a mãe tivesse posto ali para alegrar os dias de quem passa. Se é esse o propósito, resulta. A menina dá-se à conversa com toda a gente, não teme estranhos e até embarca nos jogos de faz de conta que as velhas usam para a provocar. De quem é esta menina tão linda que eu nunca tinha visto? Como vive luxuosamente sem máscara, Alice pode exibir-lhes o sorriso, o perfil ordeiro dos dentinhos de leite, o nariz arrebitado à caça de mundo e outros sinais exteriores de riqueza. Quase a cantarolar, responde às velhas que é da avó e, de lá de dentro, o orgulho da rapariga da papelaria não demora a acusar o abalo: como é que é?! o que é que disseste?! Mas a menina só conta três anos, não está para servir de tapa poros às inseguranças da mãe. Interpretar o real e descobrir nele o lugar e a razão dos próprios desejos, deslumbramentos e temores já basta como desafio para a criança que é, não tem de levar às costas a carga de outrem. Então, desvalorizando aquela tosca manifestação de autoridade, volta a disparar sem culpa nem misericórdia: Licita é da avó. E a rapariga da papelaria, que tanto desesperou por um grande amor, um amor com olhos só para ela, que não lhe falte, não a troque, não a use e deite fora, esquece que é mãe e não poupa na vingança: olha, logo não te dou chocolate nem te conto uma história. Mas Alice nem ouve, concentrada que está a sondar o interior do nariz com a pontinha do dedo e a tomar o gosto ao resultado da colheita. 
As velhas apertam os lábios. Querem rir da tolice que precipitou a desavença mas o melhor é não pôr achas na fogueira. A rapariga também é a menina delas, conheceram-na ainda adolescente, viram-na fazer-se mulher, tornar-se mãe, deram-lhe ouvidos e conselhos, estimam-na como aos do mesmo sangue. Vão continuar do lado dela: isso filha, tens de ter mão na catraia agora, senão faz de ti o que quer. O apoio das velhas é quanto basta para a rapariga da papelaria recuperar da estocada. Endireita-se, faz as contas, dá o troco. Há de segurar Alicita, ao menos Alicita. 

20.4.21

Começando a semana da Queima das Fitas, íamos três seduzir o pai da Débora. Se não houvesse ritual de pedinchice, de preferência algum espetáculo de humilhação, ele não a deixava sair, nem para um café, quanto mais para uma noitada. Enquanto for eu quem te sustenta, fazes conforme eu mando e um dia que te cases, aí entendes-te com o teu marido. 
Era uma moradia de dois andares que ele se envaidecia de ter levantado com as próprias mãos, numa travessa da zona oriental da cidade. Quando lhe entrávamos pela sala dentro, esforçava-se muito para encobrir a ofensa que a nossa disposição lhe causava e punha-se logo a ensaiar modos do cavalheiro que não era: ó Maria, traz os calcezinhos e a garrafa de vinho do Porto pr'estas meninas. Nem por favor. A mulher saía detrás dele como um passarinho, muita vergonha e uma bandeja com quatro cálices embaçados, conta certa para ele e para nós, que por decisão do senhor mãe e filha não bebiam. Depois, de onde éramos, se os paizinhos não nos punham horas para chegar, se namorávamos, bebíamos ou fumávamos, quem nos levava, quem nos trazia. Dávamos todas as respostas como se de facto lhas devêssemos mas mentindo em algumas porque sem artimanhas a Débora ficaria por casa. Também não doía assim tanto, o essencial era conter bem todos os ímpetos que nos moviam à festa, usar beicinho e humildade, vá lá, por favor, deixe, prometemos que não a perdemos de vista, e misturar muito bem as falsidades que nos ocorriam, que casa linda, que zona calma, que vinho incrível.
Quando se achava satisfeito com a bajulação e seguro do seu poder, vá, desta vez deixo. Acompanhava-nos até à rua e aí inventava pretexto para mais dois dedos de conversa, dando tempo à vizinhança de testemunhar o êxito do cinquentão todo espraiado na vida e bem relacionado com a juventude. Depois, com um gesto teatral sacava do bolso um maço de notas e lambia o dedo para fazer deslizar duas: toma, paga um sumo às tuas amigas. Um sumo, com certeza.
A Débora sabia que na manhã seguinte ia apanhar, por motivo real ou imaginado, mas não só estava disposta a pagar o preço como a considerá-lo justo. Amava o seu carcereiro com devoção e orgulho. Louvava-lhe a têmpera, contava de ele ter atravessado intacto uma infância mal amada, depois uma juventude de penúria, mil infortúnios e indignidades, e ao cabo de tudo, assim que se fez homem, com quase nada nas mãos construíra aquela casa. Desde então, nem um dia de férias. Tudo para a criar, mantê-la em escola privada, dar-lhe a carta, o ensino superior e tudo o mais que ela precisasse, filha única, princesa, joia do seu coração. Sair é que nem pensar, que tirasse a ideia de namorar ou exibir-se em esplanadas, festas e discotecas. Muitas vezes, incapaz de engolir as ganas de liberdade, a Débora virava-se a ele mesmo sabendo que levaria o troco na pele e de cinto. E se depois lamentava não era pela dor da tareia, mas pela certeza absoluta e quase feliz de que não se paga com insurreição àqueles a quem tudo devemos. Então, chorava o arrependimento no colo da mãe, uma santa que a ensinava a levar pela calada a água ao seu moinho. 
Por isso, quando a certa altura – fatal como o destino – a Débora me pedia imita o sotaque lá da tua terra para o meu pai ouvir, ó pai, é tão cómico como as pessoas falam no interior, como se eu fosse um macaco migrado de lonjuras atrasadas e incivilizadas, eu chegava a perguntar-me se os meus pais, sempre tão cheios de justiça, sensatez e diálogo, me teriam educado convenientemente.

16.4.21

Como uns se lançam em limpezas e arrumações frenéticas para enganar o caos que vai no seu íntimo, eu meto-me a restaurar velharias para amaciar as penas que sinto pelo correr do tempo. Quando a imaginação está um antro de fantasmas e más companhias, vale-nos o domínio sobre o espaço e a matéria. Uma ferramenta na mão – e dá no mesmo uma esfregona, um bisturi, uma trincha, uma caneta, um cinzel ou uma enxada – torna possível ludibriar quase toda a realidade. 

10.4.21

Vivo num país onde mais rapidamente se é apedrejado pelas opiniões que se dá do que punido pelos crimes que se comete. Aqui, dorme melhor quem rouba do que quem pensa. 

7.4.21

 – Então, eu também tenho os meus defeitos, mas ao menos admito-os.
Prega a rapariga da papelaria à mãe mas, em boa verdade, é por toda a fila de espera que quer ser ouvida. Está num daqueles dias de fulgor e otimismo que costumam suceder abruptamente a outros de pasmo e melancolia. As velhas usam mil cautelas antes de lhe dirigirem a palavra porque se calha brincarem com ela num dia em que acordou de humor caído ainda se põe a chorar, muito ofendida. Mas se está como hoje, ai de quem for ali queixar-se do mundo ou de má sorte, porque toda ela se empolga a varrer sem piedade pessimistas, descrentes e seus cúmplices. Nunca é certa, mas atire a primeira pedra quem de entre nós for.
– Admites, admites… 
Responde a mãe, a revirar os olhos nas costas da filha para que a ironia não escape à plateia.
– Se quer falar, fale, mãe! Ou julga que me envergonho?
– Olha, pra começar, és teimosa.
– E teimosa é lá defeito? Sou mas é burra, é o que sou. Burra! E só eu sei onde já estava se não fosse…
Sorri levemente, a mostrar que se perdoou os erros cometidos. Já a mãe, essa apruma-se na cadeira, ajeita as bordas do casaquinho de malha como se para um instante de solenidade a chamassem de repente, e dispara:
– Sais ao teu pai.
As velhas agitam-se com a ofensa ao defunto. Dona Fátima, por amor de deus, acabámos de sair da páscoa e das igrejas, os corações ainda estão perfumados com resquícios de fé e condescendência cristã e já estamos a maldizer os que o senhor escolheu salvar chamando para junto de si? De resto, sublinham, a rapariga é burra coisa nenhuma e quem o disser fala de cor porque salta à vista como é educada, bem falante, mãe extremosa e com muito brio no atendimento. A cabeleireira, que em boa hora o desconfinamento ressuscitou, espreita à porta e acena, mas, duvidando do ar que lá dentro se respira, só atira de fugida: teve um azar, prontos, mas ninguém está livre. 
A mãe da rapariga da papelaria encolhe os ombros, envergonhada do que disse, orgulhosa demais para desdizer. A filha continua a sorrir e se for verdade que alcançou o mérito de enfrentar as próprias falhas, nomeá-las e perdoar-se por elas, não será para os outros que vai armar-se em juíza. Mas quando tudo parece apaziguado, eis que Alicita se levanta detrás da fotocopiadora, de entre uma feliz desarrumação de papéis e lápis de colorir. E apontando o dedito à rapariga da papelaria – que calha de ser sua mãe – põe-se a cantarolar, com a alegria própria dos inocentes que, apesar de ignorarem o mal, se envaidecem de tão depressa e bem o aprenderem:
– Burra! Burra! Burra!

6.4.21

Quando aviso a estagiária que os adjetivos são o atalho descritivo das mentes preguiçosas, responde-me que não foi isso que aprendeu na escola. Dou-lhe razão – a escola não ensina a usar o adjetivo com o devido respeito pela dignidade do substantivo. Ela faz-me a pergunta a que até hoje nenhum dos meus estagiários resistiu: onde é que eu posso aprender mais sobre isso? E eu também não vario na resposta: em todos os livros do mundo.

2.4.21

O amor vive fundamentalmente de uma vocação epidérmica. 
Tem doença ou desumanidade quem se conforma em subjugá-la às orientações do Estado.