28.8.23

Ao cabo de algumas semanas de excessos, volto à clausura do mosteiro para rever certas lições que, por teimosia ou genética, jamais aprendo. Retiro-me sem fotogenia, sem momentos instagramáveis, sem cenários de padrões étnicos, filtros de sonhos ou árvores da vida. Aqui o abrigo é pedra, os dias são de nudez e austeridade, silenciosos e por vezes até obscuros. Mas é certo que posso pasmar sobre uma parede mofada com a mesma satisfação com que outros o fazem sobre o dourado líquido de um poente e enquanto esses são animados pela ideia de que todas as coisas são possíveis no infinito universo, eu aceito que todas as coisas são inevitáveis na finitude que sou. Não busco clichés sobre a felicidade, o amor-próprio e outras boas intenções de que o inferno das bocas alheias já está cheio. Ambiciono coisas maiores: decifrar enigmas, investigar a verdade, levantar as proibições que os deuses fazem aos humanos. Mas mal me sento a meditar diante da face iluminada de Buda e dos seus olhos repousados, sem sermão, doutrina, castigo ou fantasia, fico refém da lembrança dos meus apetites mundanos: waffles com chocolate quente, dois tragos de hidromel, as mãos competentes do homem cínico, escrever com propriedade sobre coisas que, em bom rigor, ignoro.

24.8.23

Esta cidade deixou de pertencer aos que têm o seu sangue. Nas ruas do centro, já poucos falam a minha língua ou cobram o que eu posso pagar. A realidade pura e simples deixou de bastar como experiência, é preciso um conceito, um simulacro, um rótulo, uma recriação, um ambiente. A cultura fez-se carnaval quotidiano, mais nobre no argumento do que no bem que deixa. O Porto do Carlos Tê desapareceu, cansou-se de moer sentimentos no seu jeito fechado e vendeu o corpo e a alma, abandonando os próprios filhos na sarjeta.  

18.8.23

Minha Nossa Senhora Daqui e Dacolá, que varres as angústias para as margens do verão e trazes à luz os santos que dormem na sombra fresca das igrejas e vestes as crianças como os anjos que jamais hão de ser e és levada em ombros e espalhas cheiro de farturas e misérias, vê bem que os homens compraram agosto inteiro só para ti, então faz o jeito e, ao passares na minha terra, à porta da minha casa, na face negra da minha alma, pousa a tua mão, em cujos milagres descreio, pousa-ma nas feridas, benze-me a carne viva, estanca-me o sangue, faz também a mim o que fazes aos outros, põe-me a girar nos carrosséis das rotundas, tira-me o tino, o fôlego e a memória da véspera, enche-me a barriga de gorduras queimadas e vinhos baratos, suja-me desse pó que se levanta nas pracetas onde os homens se embriagam e as velhas dançam como se chamassem o diabo e as crianças confiam em quem não devem e o tempo futuro dos verbos nunca se aprende em condições. 

11.8.23

Dentro de um par de dias, a professora que vive com três gatos pretos e um ror de tralha acumulada embarcará para Barcelona, a visitar o rapaz. Um aborrecimento, com esta caloraça e os aeroportos à pinha, mas o que é que uma mãe não faz por um filho? pergunta e, num suspiro, espalha ao redor o açúcar do pastel que abocanhou com mais ganas do que dentes, ou não fosse a gula, entre todos os prazeres que nos condenam aos infernos, o mais desajeitado. Contudo, a verdade é outra. Pudesse esquivar-se e repetiria mais um agosto na clausura, trasladando as pilhas de livros entre o quarto e a sala, tropeçando na impaciência dos gatos, mastigando a saudade de um corpo presente, não para amar, que disso já não se acha merecedora, mas para aquele consolo instantâneo que o êxtase oferece e que só comove quando acontece nos braços do outro. Está-se bem é em casa, na companhia de uma dor tão velha que já nem prega sustos nem pede contas. Mas como se desculparia ao rapaz, há mais de cinco anos a pedir a visita da mãe? E o que diria a esses, por tudo e por nada deslumbrados, que veem a sorte grande numa casa à disposição para lá da fronteira?
– Ai, sotôra, quem me dera embarcar eu, fosse pr'onde fosse, e tão cedo ninguém me punha as vistinhas em cima.
Diz a cabeleireira. O riso dela troa como o das bruxas, engasga-se com o fumo do cigarro e Gabi prontamente acode, sovando-a entre as escápulas. Talvez aproveite para fazer justiça à sua condição de assalariada, toma lá esta por todas as horas além da hora, esta pela esmolinha ao fim do mês, esta pelo subsídio de férias que só vem depois de as gozar, esta pelas tostas mistas almoçadas no gabinete da fotodepilação para não fazer esperar as doutoras. 
– Se é de fugir que tem vontade, o melhor é falar com um especialista, pode estar a precisar de tomar alguma coisa. 
Assim aconselha a professora que vive com três gatos pretos e um ror de tralha acumulada, ou, melhor dizendo, assim fala o roto ao nu e dele se apieda. Coitada da professora. A morte avança para ela a passos largos. Não a morte definitiva, material e misericordiosa, que poupa a alma ao pavor da eternidade e à insuportável carga da sabedoria, que termina coroada de epitáfios e a encher de culpas o coração dos vivos. Antes a morte que obriga a manter os olhos abertos e arranca o corpo à cama todos os dias e o faz tombar de novo a cada noite sem lhe ter autorizado uma única esperança, uma única carícia.