Faz-me pena a rapariga que veio para a entrevista no departamento oposto ao meu. Pelo vidro da porta, vejo-a muito aplicada no domínio da linguagem corporal, não dobra as costas nem cruza as pernas, põe freio nas ganas de gesticular, inclina ligeiramente a cabeça para se mostrar atenta. Imagino que esteja em esforço para falar corretamente, a sua e todas as outras línguas. Talvez responda ingenuidade, teimosia e perfeccionismo quando lhe perguntarem pelos seus maiores defeitos. Faz-me pena que invista tanto em maneiras de rigor, equilíbrio, sensatez ou educação e tenha a ilusão de que importam. Mais cedo ou mais tarde descobrirá que nos locais de trabalho não se foge à regra da vida em geral, as pessoas endoidecem, embriagam-se, enrolam-se, maldizem, censuram, apaixonam-se, traem-se, culpam-se, derrapam nas contas, gaguejam nas línguas, ajavardam na ortografia. A lucidez não é valor por aí além – tem mais fama do que outra coisa qualquer – e as maneiras só importam consoante o caminho que abrem. O dinheiro, que é a causa e a consequência de se trabalhar, não tem esquisitices: aperta a mão à mediocridade e à excelência com igual vigor. Portanto, se esta garota tem a ideia de que saiu da universidade para entrar num mundo adulto, intelectualmente dotado e moralmente superior, o balde de água fria vai custar. Depois habitua-se.
28.9.21
24.9.21
A caminho da pré-escola, Alicita vai celebrando as bênçãos e as miudezas da infância. Nenhuma rotina lhe pesa, tudo tem ar de novidade. Como pode a gente adulta enfastiar-se neste mundo sempre em movimento? Não são um espanto as flores a despropósito nas juntas dilatadas do passeio, as nuvens na corrida de outono, os rostos estranhos na paragem de autocarro, as cabriolas do gatinho a assaltar o ecoponto, o ciclista a esforçar-se tanto na subida? Orgulhosa de ser aprendiz de pleno direito, com inscrição e documento, nome bordado na bata, pão com queijo, iogurte e muda de roupa na mochila, Alicita vai com fé. Se houver razões para temer ou duvidar do destino que lhe é imposto, não as provou ainda. Que perfeição. As velhas acenam, atiram beijos e votos de uma jornada de alegrias e êxitos. A avó orienta: anda, minha florzinha, estuda para chegares onde a tua mãe não foi capaz. Estão cheias de mágoa estas palavras, mas Alicita só reconhece nelas lisonja porque o filtro da inocência retém o que não presta. Ri e diz que sim, que chegará lá onde querem que chegue. Não sente, mas tem a infância toda cravejada pelos estilhaços do desastre sentimental em que a mãe e avó vivem, duas fêmeas orgulhosas, inimigas só por vício e engano, a sangrar de pescoço levantado.
23.9.21
Só com muita faltinha de ambição é que uma rapariga larga o que tem aqui e vai enterrar-se lá na parvónia.
Fala assim – sobre a imperatriz – a mulher do senhor Pereira, esse grande modelo de vontade e sucesso, uma vida inteira exclusivamente dedicada a polir o marido infiel para não macular o retrato de família.
22.9.21
Ao cabo de todos estes anos como leitora de blogs, ainda me pergunto se o anonimato será mais favorável à honestidade ou à impostura. Mas, afinal, concluo sempre da irrelevância da questão. Um bom blog não deve absolutamente nada à verdade, o único compromisso é escusar-se a ofender os leitores servindo-lhes menos do que a sua inteligência merece. Se em dois ou três parágrafos me levarem ao êxtase ou me mostrarem os avessos mal costurados da realidade e me acordarem dos sonos em que me deixo cair e cutucarem o meu pensamento habituado, estou-me nas tintas para a coerência entre o que está escrito e a vida de quem escreve.
21.9.21
Ao fim da tarde, depois do trabalho, pego na bicicleta e vou pela beira do rio a fazer de conta que a minha vida é ligeira e fotogénica como a das mulheres dos anúncios que pedalam no meio das searas de chapéu de palha. Comigo vai apenas o rapaz voador porque o menino com cabelos de oiro velho e olhos de mar de inverno, esse agora usa uns modos novos de estar, costurados com voz grossa, encorpados com ganas de distância e independência. Ultrapassou-me em altura e fez-se uma cópia tão exata do pai que me sobressalto se o vejo, em reflexos de espelhos ou janelas, aproximar-se, rodear-me a cintura, deixar-me um beijo doce na nuca. É hora de o deixar ir e ser o que é, mais o que pensa ser e o que sonha que será. Deixá-lo ir porque voltará na hora justa, de livre vontade, depois de cumprir a grande transformação, visitar as sombras do seu ego, desatar o sarilho de desejos, espreitar a beira dos precipícios, exagerar na vergonha e no orgulho. O rapaz voador também voltou, leal e corajoso, com uma carga de coisas novas que eu não saberia ensinar e agora pedala comigo na beira do rio como se nunca tivesse chegado a ir.
Essa turba de mães que ocupam os escaparates das livrarias com diários sobre as zonas negras da maternidade e que são elogiadas pela coragem de dizer a verdade - pouco mais fazendo do que imitar-se umas às outras em formato, estilo e ladainha - debruçam-se muito sobre a primeira infância, mas nunca vi nenhuma que fizesse graçolas sobre o que sente a respeito dos seus adolescentes. É a perda do poder absoluto que cala essas mães. Dramatizam histórias vulgares e fazem auto-análise à custa do dia-a-dia dos inocentes ranhosos que, por mais que berrem e deem más noites, acabam subjugados à sua autoridade. Mas a partir dos doze anos só falam das suas performances escolares e dos seus talentos ou condenam-nos pelos feitios insolentes, atrevidos, desorganizados. Nenhuma confessa a melancolia que fica quando a ternura começa a esbater-se, quando o corpo nos transborda do colo, nenhuma consente que o pavor de os sentir largar a nossa mão faz de tudo o que está para trás uma brincadeira de principiante, um passatempo, uma delícia sonolenta, cor-de-rosa e perfumada.
20.9.21
A propósito da vacinação anti-covid – oh, como chego sempre tarde! –, tenho dificuldade em hierarquizar o grau de toxicidade dos negacionistas e dos evangelizadores, decidir quais entre ambos indiciam mais insanidade e representam maior dano. Envergonha-me o nível das ofensas dos dois lados da barricada, é um jogo de esgrima fraco, de lâminas rombas, infantilóide e em desespero. A acefalia não está indexada a ideologias em concreto e o mundo parece tão absurdamente desajeitado quando falam os que fanaticamente recusam como os que devotamente cumprem. Uns vestidos de rebeldes, outros com a farda de moralistas, monopolizam as conversas, os tempos de antena, os artigos de opinião, debitam insultos, sátiras, papers e assim se serve o grande banquete do entretenimento, antecâmara da política e, neste caso, cemitério da Ciência.
10.9.21
Cada um teve o seu agosto e o meu foi intelectualmente miserável, fútil e preguiçoso. Andei a arrastar o espírito pela superfície das coisas e não peguei em livros a não ser para os emprestar ou mudar de sítio. Não lamento ou sequer me envergonho. O calor tolhe-me o raciocínio e leva-me cedo para a cama, faz-me desinteressada e desinteressante, sem tolerância aos esforços e à complexidade. De inverno vivo mais atenta e criativa.
O meu vizinho saiu esta manhã de calça bege, camisa azul-clarinho e sapato castanho, que é a farda dos homens ajuizados e comprometidos. Durante mais de um mês não lhe pus a vista em cima. Também teve direito ao seu agosto, há de ter aproveitado para pôr em dia as leituras e o sexo, gastar as solas nos passadiços, regar bem o marisco com alvarinho, levar o diabrete às cavalitas e aferroá-lo com cócegas, prender o cabelo da mulher atrás da orelha para rever a sua face esquecida.
A rapariga da papelaria arrancou do calendário a página de agosto sem ter tirado vantagem. Porta aberta de segunda a domingo, manchetes novas escancaradas na montra todas as manhãs, a fila para os jogos da sorte nem perdeu espessura. Agosto não abranda a rotação da terra nem deixa em repouso as desgraças e os vícios. As férias de Alicita com o pai ficaram em águas de bacalhau, porque a madrasta entrou no último trimestre de gravidez e agravaram-se-lhe as cismas a vírus, fungos, bactérias, amigos e parentes. Ninguém lhe vê um pé fora de casa. A rapariga da papelaria pede contas, como é que é?, a menina precisa e tem direito às férias com o pai, mas ele apresenta um rol de desculpas e razões com eloquência, afinal, é um malandro, sempre foi – garante a avó –, e malandro que preste usa quase tão bem o verbo como as mãos.
Para a professora que vive com três gatos pretos e um ror de tralha acumulada, agosto já era e pronto. Ainda esteve para se meter num avião e visitar o rapaz em Barcelona, mas tem andado mal das costas e da cabeça, falta-lhe o apetite, formigam-lhe as mãos, o chão foge de manhã ao levantar – enquanto desabafa expulsa o fumo do cigarro em todas as direções, pede um éclair e cai como pasta mole na cadeira da esplanada. Há de vir ele cá no Natal, passa num instantinho. De qualquer maneira o mundo está do avesso, antes vale não sair do seu canto, tem de poupar forças para a nova turba de adolescentes desrespeitosos, alienados, incultos, a quem vai meter na cabeça, pela repetição, as regras, medidas e recursos que domesticaram a loucura do poeta na hora de estender o verso genial.
7.9.21
Da realidade, esperamos desfechos apoteóticos e surpreendentes como os que os guionistas de americanices tramam, mas a vida acaba por ser quase sempre só uma história de decadência pontuada com êxtases e passatempos, mais ou menos abençoada, mais ou menos dolorosa. Não há um clímax a precipitar revelações e a resolver de uma vez o conflito. Na maioria das vezes, o epílogo é só uma singela despedida, um acidente ou façanha que jamais são capa do jornal, um segredo que mal acicata a curiosidade de bairro, um monte de tralha que fica para arrumar, um rascunho, um amor muito aquém da eternidade, um dia de morrinha como o de hoje. Somos heróis de trazer por casa, o nosso infortúnio pessoal é invisível e resignado, os nossos êxitos são fogachos insuficientes para desenredar dúvidas, medos ou más memórias, e só raramente iluminam o caminho adiante.
Na qualidade de mensageira – a única a que me arrisco –, lamento a vulgaridade do que aqui se conta. Lamento que a imperatriz vá embora com Joaquim e que não haja rumor de nenhum duelo, nenhuma verdade oculta a vir à tona, nenhum homem de joelhos, nenhum escândalo, descontrolo ou ameaça na hora em que ela aperta os cintos da cadeirinha do menino, fecha a porta do carro, diz adeus e arranca para Penedono.
4.9.21
Em contagem decrescente para a partida de Joaquim, os Pereira fazem a gestão atabalhoada das emoções e encontram na atribuição de culpas o mais rápido dos paliativos. Se é grande o rancor que neste momento os une, muitos são os que os separam. Nenhum teve a coragem bastante para desafiar a imperatriz nem humildade para lhe pedir que reconsiderasse a decisão, em nome do futuro de Joaquim e da felicidade de todos. Então, calada e acobardada a raiva que ganharam à mãe do menino, travam entre eles uma batalha de egos e disparam acusações, cada um achando que os outros têm responsabilidade no desfecho.
Curiosamente, agora o senhor Pereira mantém-se longe deste ajuste de contas e cede àquela melancolia que dá nos velhos quando notam que para tudo se fez já demasiado tarde, uma melancolia sem charme nem romantismo que só na morte encontra cura. A graça de Joaquim no seu quotidiano foi breve, como um prémio atribuído por engano. Deus desfere golpes traiçoeiros, dá com uma mão para a seguir tirar com a outra, há quem se console com o eufemismo da porta que se fecha e da janela que se abre, mas tudo se resume a um jogo para nos manter despertos, porque em repouso somos imprestáveis, só medidas pares de amor e raiva podem manter a rotação do mundo no ponto exato e tenso, tão a salvo de ser consumido pelo fogo como de se lançar ao infinito. Joga quem souber, quem não jogar enlouquece.
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