26.10.22

Todas as coisas são menos importantes do que aparentam quando as contamos. Na realidade, tudo são miudezas, quotidiano, e o que sentimos como tremendo ou raro – a morte, um desgosto, uma traição, uma doença – não é senão o que no mesmo instante acontece a milhões de pessoas. Vivem desatentos aqueles que acreditam que a própria vida dava um livro, porque um livro dariam todas as vidas e, em bom rigor, a nossa tragédia é só pano de fundo e figuração no monumental enredo do outro e vice-versa, já que a história depende sempre mais de quem conta do que dos acontecimentos. Talvez seja por isso que se escreve, para que na enxurrada universal de perdas, dores e desalentos, não vá, arrastada e esquecida, a nossa ínfima parte. Contar é fazer justiça às coisas que deus ignora. 

14.10.22

Pode ter-se debatido na noite com fantasmas e demónios, ou nem sequer ter ido à cama. Talvez os filhos a desgostem na medida em que é humano desgostar ou o marido em certos dias a ignore na medida em que ignorar se torne um imperativo conjugal. Pode ter-lhe faltado dinheiro, saúde, lucidez, remédios, razão, tempo, paciência, sapatos ou carteiras, mas ela chegará feliz e disposta como as infâncias iluminadas, oferecendo-se para serviços, prestando-se a favores, motivando os ensonados, distribuindo rebuçadinhos e boas palavras. 
A mim o seu riso não me rasteira e tampouco me seduz a simpatia. Caem-me mal esses feitios prestativos e bajuladores, revolvem-me o estômago os cumprimentos carregados de melaço, gente que chama babe, 'morlindona, ou que por mensagem distribui sem critério corações e abracinhos. Do tanto que esbanjam, quanto vale o que sobra para aqueles a quem realmente querem bem?  

11.10.22

Nada foi aqui dito entretanto, mas a verdade é que já faz quase um ano que nasceu o irmão de Alicita – ou meio-irmão, para evitarmos cutucar os nervos da rapariga da papelaria. Deram-lhe o nome de Álvaro, já que a mãe viu muita graça na aliteração como reforço da consanguinidade, coisa que, aliás, se tem tornado frequente em certas famílias que escolhem os nomes dos filhos pelos seus efeitos mimosos, espetaculares ou instagramáveis. E assim foi desde logo a criatura submetida à voraz correnteza das modas, cujo fluxo tende a ir do centro para as periferias começando por ser estilo e acabando a tornar-se foleirada. 
Temos então Alice e Álvaro, uma perfeita duALidade. 
As duas crianças entendem-se dessa forma desarmada, indefesa, que é um privilégio da infância fatalmente devorado pelas tristes experiências da vida. Serem irmãos por inteiro ou pela metade tanto lhes dá. Quando se conheceram, ela emudeceu ante a fragilidade daquele ser mínimo mas assumiu sem receios as competências que o pai lhe atribuiu nos cuidados do bebé e ele, depois da mama e do intestino aliviado, dormia na paz dos anjos à beirinha dela. Ninguém ficou surpreendido por ter sido Alice, trapalhona mas empenhada, quem lhe deu a primeira colher de sopa e por ter sido testemunha única do momento em que ele, agarrando-se ao móvel da televisão, conquistou a sua humana verticalidade. 
Por insistência da menina, trouxeram Álvaro à papelaria logo no primeiro mês de vida. Alice queria apresentar à mãe o novo brinquedo de carne e osso e contar-lhe do que era capaz de fazer com ele, de como era madura nos cuidados, indo ao ponto já de desvalorizar os próprios desejos em prol dos dele, como da vez em que lhe deu a lamber os dois dedinhos que acabara de mergulhar na taça de mousse de maracujá. Toda a gente gostou de Álvaro. Mal o pai entrou com ele, a emoção varreu para longe todos os ressentimentos que, por solidariedade com a rapariga, se alimentavam naquela papelaria. Acaso a criatura tinha culpa de ser fruto de um casamento com danos colaterais? Então, em menos de um ai era uma multidão a admirar o pequenito no seu ninho de folhos e bordados, a dormir o sono dos inocentes, exalando o aroma lácteo da pele e o perfume algodoado dos hidratantes para a infância. E aquela ternura imensa convocava todas as mães do mundo e apartava os homens, deixando para eles um sentimento de pequenez e excedente. Recuados junto ao expositor de revistas, o pai, o Marco do ginásio e dois ou três clientes admiravam, sem interferir, o círculo de mulheres que se fechava em torno da alcofinha. Gabi, a manicura sonsa, desfez-se toda em suspiros:
– Quero ter muitos destes.  
Estava dado o mote.
– Muitos? Se soubesses o dano que um único te pode causar... 
– Mas olhe que compensa pelas alegrias que dão. 
– Não há quem nos queira tanto como os filhos. Dá igual pra eles se somos feias ou bonitas.
– Eu cá se, fosse hoje, não sei se tinha tido os meus. Envelheci muito com as preocupações que me deram.
– Pedem-nos tudo, é verdade, mas também nos perdoam tanto! 
– E o que lhes perdoa a gente a eles? Também conta, não? 
– Caramba, dona Fatinha! E qual era o ganho de não perdoar? 
Mas a mãe da rapariga da papelaria não soube responder e abandonou o círculo. Sentou-se, mais a moinha dos seus ressentimentos, na banqueta de madeira detrás do balcão e, como a filha se demorava a adorar o menino esquecendo até a parte que a ele tocava de responsabilidade pelo seu sofrimento, murmurou, azeda:
– Não perdes a mania de cobiçar o que é das outras.

10.10.22

Esta noite sonhei que conseguia apaziguar de vez todas as turbulências do coração de Beatriz e, acordando, entristeci-me ao constatar a realidade tão aquém. Beatriz é minha amiga. Soube-o no dia em que eu disse não avanço mais, comprometendo de forma drástica o mundo ao meu redor, e ela só respondeu está bem e depois diz-me o que queres que eu faça. Sobre os amigos costuma dizer-se que estarão lá para nos chamar à razão com as verdades duras e necessárias e serão até louvados pelo sangue frio com que nos aplicam dois tabefes em ocasiões de insensatez. Mas o que é isso senão mais uma entre tantas banalidades de inspiração romântica? Beatriz, ar seráfico e compreensivo, não gastou o instante do meu desespero a ajuizar, tampouco me diminuiu com conselhos de pechisbeque que a si mesma não houvessem servido. Antes deu as suas costas para sustentar também a derrocada da qual só eu tinha a culpa – está bem. Sonhar que lhe apaziguava o coração é retribuir de forma menos do que insuficiente.