26.1.24

Na boca do homem cínico sobrevivem, cheias de senso, palavras que a preguiça e as importações arredaram das escolas, dos diálogos quotidianos e até da literatura recente. Porém, ele não as escolhe complexas ou pretensiosas, porque usar o verbo como instrumento de vaidade é próprio dos idiotas e oposto ao seu feitio. Escolhe-as por critério de rigor, para ser fiel, para me dar a visão do que eu não presenciei e só posso imaginar: a sua infância, a sua façanha, o seu ato falhado, as atribulações do seu dia-a-dia. Tudo o que ele diz tem o corpo cuidado, digno e superior da língua portuguesa, da língua que venero e da qual sou aprendiza deslumbrada, da língua que opera e edifica as minhas coisas miúdas. O homem cínico manobra-a com sabedoria e generosidade e é com ela que me deita, é com ela que me despe. 

25.1.24

Em pequena, gostava de ler o dicionário freudiano de interpretação dos sonhos, livro que apareceu entre a vasta e eclética biblioteca do meu avô materno. Por muito tempo eu e as minhas irmãs tivemos o hábito de consultá-lo quotidianamente, na esperança de decifrar os enredos que, dormindo, fabricávamos. O livro satisfez as curiosidades apressadas e momentâneas, mas não a sede de entendimento. O mundo dos sonhos permanece para mim um mistério e nada do que diga a gente das ciências da psique – das exatas às ocultas – me contenta. Na semana passada, por exemplo, enamorei-me de um homem quadrado e dediquei horas a lixar as suas arestas para que ele pudesse amar-me sem me magoar. Ontem, perdi no aeroporto um cachorrinho que uma amiga me confiara dentro de um saco de compras do continente. Hoje, comecei a trabalhar como estafeta numa fábrica de pantufas. Em certas noites cometi crimes sórdidos, com gozo e violência, sem arrependimento, para fazer cumprir uma justiça em que cegamente acreditei. Mas, no meio de tudo, o que é realmente curioso é que, tantos anos depois, a minha subconsciência continue a inventar alternativas à tua morte. Entras pela casa como se fosse território do teu domínio e justificas a ausência com razões que a cada noite mudam: uma reunião de trabalho que se complicou, uma volta ao mundo decidida num repente, outra mulher, outra família e, às vezes, de caráter transfigurado, muito azedo, insolente, dizes que é que foi? que queres? deixa-te de merdas, fui só ali num instante. Parece impossível que, noite após noite, continues a repetir a estocada. E que, para te manter vivo, eu seja capaz de inventar tudo, até o que o meu coração jamais suportaria.    

23.1.24

Vivo mal-entendida com o mundo e não tenho interesse absolutamente nenhum em resolver isso. Às vezes adoço, satisfaço-me com desimportâncias como a ordem da casa, as boas palavras desses com quem convivemos de raspão, o sol nascente no quarto, um bolo no forno, um chazinho, enfim, a doçura quotidiana que adormece e cria poesia pálida. Cedo apenas porque não quero que os meus filhos me vejam como as árvores que racham por se oporem demais à ventania. Mas esse bem-estar de pele e circunstância dura pouco, logo recaio no vício da descrença, que, admito, também tem os seus cómodos, facilidades e conveniências. 
Então, quando o senhor Pereira vem direito a mim com ânsias de gaiato, a cantarolar Gente que é lá da Régua / não se espera que dê trégua, e me saúda com a palmadinha na face e o olhar daqueles pais que só condescendem por terem também o poder de castigar, penso que talvez seja ingrato, da minha parte, retribuir as pequenas graçolas da vida com relutância e má cara, desconfiar tanto dos tempos de paz e dos esbanjadores de felicidade, recusar-me a falar nessa língua distraída que conjuga sempre os verbos no modo simples do tempo bem passado. Esforço um sorriso que encubra a irritação, digo feliz ano novo, deixo que aperte as minhas entre as suas mãos e, por razão que ignoro e não vale perguntar, ele comove-se. Acho que o senhor Pereira gosta de mim. Mas de um gostar cansado, rendido, que não escolhe mas acata, que é cúmplice no descontentamento, embora oposto na sua causa.

16.1.24

De quem seria o maior susto, a mais terrível experiência: do adulto que retrocedesse às horas violentas do próprio nascimento ou da criança que, ao vir ao mundo, antevisse toda a carga que o futuro lhe reserva?