26.8.21

No ano passado, Gaspar prescindiu da horta para criar mais lugares de estacionamento. Uma pena, porque a horta, a bem dizer, resgatava à ignorância muita canalha que vinha das cidades a julgar que a troncha nasce nos lineares do pingo doce. Era o modesto mas bem-intencionado contributo de Gaspar para o esclarecimento da Humanidade. Sucede que agora, com o vírus e o medo de passar fronteiras, as famílias vêm em romaria ao interior aliviar os stresses e reconectar-se com a natureza, então Gaspar teve de escolher entre continuar a salvar as crianças do provincianismo urbanita ou criar novos espaços de estacionamento para responder à procura. Neste fim de mundo, nesta orelha arrebitada do país, onde tudo são miragens, rigores e maus feitios, qualquer coisa pouca pode fazer a diferença entre a ruína e o sucesso de um negócio, entre a parolice renegada e o lifestyle a qualquer preço. Ainda por cima esta gente é com cada carrão que cá aparece! Não é que isso o impressione, pelo contrário. É dono orgulhoso de uma lata que o leva ao Porto em pouco mais de duas horas e sempre em quinta. É aquele acolá, o vermelho. Pelo aspeto duvido, mas concedo. Gaspar empenha-se muito em mostrar simplicidade e desprendimento, só na hora em que aviso que estou de partida é que deixa a fanfarronice respirar um bocadinho: a minha filha, essa é que comprou uma bomba, venha cá, venha num instante ver.

18.8.21

A dúvida é indício de um pensamento vivo e de uma sociedade atenta, move o crescimento individual e o progresso coletivo. Poupemo-nos à bacoquice de apregoar sempre a nossa como prova de inteligência e a dos outros como sinal de ignorância.

6.8.21

A dor é uma bandeira de guerra. É legítimo agitá-la numa investida desapiedada sobre os seus causadores. E, no entanto, de bom grado teríamos evitado o banho de sangue. Mandámos sinais, avisos, disposição para ceder sem contrapartida o território onde já não temos interesses, vantagens, rotas nem comércios. Recusaram. Não era o território que nos queriam tomar, era a proximidade da raia, o rodeio quotidiano, o cerco que jamais avança ou recua porque evita perder ou ganhar, teme tanto a vergonha como o domínio. E por julgar que não disparando também não causam dano, mal imaginam que num dia vulgar, de humores insuspeitos, possam ser abatidos sem misericórdia com um único golpe. 
Talvez no futuro se lamente a desproporção do ato e muitos hão de perguntar que paz alcançamos com um desfecho assim. Acontece que a dor, sobretudo a que se faz de esquecida e não encontrou entendimento, vai ganhado o seu próprio senso de justiça e a sentença que dela vem acaba a ter mais crédito do que a dos tribunais e mais força do que a dos deuses. Nessa hora, que embora tardia não será vã, já nenhuma insegurança trava o golpe. E o tempo, para quem sacudimos a responsabilidade de todas as resoluções, passará a sua mão branda sobre as feridas e delas fará apenas mais uma de muitas histórias.

4.8.21

Nas cidades vazias de agosto pode conduzir-se de um extremo ao outro sem resistência, no tempo de uma ou duas músicas. O que sobra do êxodo, o que é abandonado e fica a piscar nos semáforos, a remoinhar na sarjeta, a empoeirar as soleiras das casas trancadas, é incorpóreo, paira mas não se opõe. Porque destoam do colorido das bagagens, minam a vibração da mudança, poluem os sonos dóceis do estio, os fantasmas são deixados para trás e ficam só a dar corda aos relógios, para que ninguém jamais se distraia da hora de voltar.