20.7.22

A gente viciada em opinião perde às vezes o sentido da sua economia. Desbarata-a como outros desbaratam tempo ou dinheiro, sem critério ou proporção, empenha-a em tudo o que bule, brilha, mancha e até no que está quieto. Temem que, se calarem, os enfiem no saco dos que consentem. Como se não houvesse tantas evidências opostas ao provérbio, tanto consentimento ruidoso, tanta resignação espalhafatosa, tantos ombros encolhidos em compasso da gritaria.

19.7.22

Toquem os sinos, deitem foguetes, lancem pétalas e confetis, agitem a batuta que ordena a fanfarra, tragam à luz solar as imagens dos santos e das virgens de todas as esperas, agonias e remédios, devolvam aos anjinhos as costas, o sexo e as infâncias terrenas, levantem do chão os que se ajoelharam a pedir, façam transbordar nas taças o vinho guardado para dias raros, sequem as lágrimas e sacudam as penas, porque é chegado o fim do longo inverno sentimental da rapariga da papelaria. Enamorou-se. E vamos repetir, não vá parecer sonho, lapso ou invenção: a rapariga da papelaria enamorou-se. 
Respiram agora aliviadas as velhas que durante os últimos cinco anos viveram dedicadas a imaginar-lhe futuros ao lado de todos os rapazes bem parecidos e sem vícios. Ah, o pavor de a julgarem condenada a dormir de pés frios, eternamente diminuída à condição de mãe solteira! E se Alicita, pondo os olhos nela, lhe seguisse os passos e caísse um dia em igual armadilha? Nem é pelo que os outros pensam, isso é o de menos, garantem as velhas, mas não é triste ser só com tanta gente que há no mundo? 
A rapariga da papelaria sabe que, com a pressa de a acomodar num lugar feliz e seguro, as velhas exageram. E explica-me baixinho, debruçada no balcão: 
– Não é nada, é só uma pessoa um bocado mais especial. 
Mas a mãe, já sabemos, apanha-lhe todas as deixas, vira-as do avesso, mostra-lhe as pontas soltas:
– Dizes isso agora. Não tarda estás perdidinha de amor. Menina para cair na esparrela duas vezes és tu.
A rapariga despacha os assuntos da clientela, avia jornais e raspadinhas, faz e desfaz as contas e os trocos, que a vida continua e custa dinheiro.
– O amor não é para mim, mãe.
Fala com voz grossa ao destino para afugentar mais sofrimentos. Mas as velhas nem consideram o que diz porque já a sonham dignificada por um novo estado civil. Até se perguntam se será sensato casar de branco e se o pai de Alicita não ficará melindrado caso seja a menina a levar as alianças. 
– Então a miúda levou-as ao pai e não havia de as levar à mãe? Era o que faltava! 
A rapariga da papelaria não é tida nem achada. É no que dá ter escancarado o coração. A sua história ganhou autoria coletiva, cada um alvitra um parágrafo, supõe um capítulo, enreda um desfecho. Cá por mim, se me chamassem a dar palpite, escolheria para ela o vestido de noiva, o mais bonito que já vi em toda a minha vida, e que está desde a semana passada na montra da Jesus Peiro. Quem o criou há de ter sido tocado, de véspera, pela visão de um anjo. A rapariga da papelaria, a mais inocente e honesta entre todas as mulheres da vizinhança deste blog, caberia nele com justiça.

8.7.22

Parece mentira: seis horas da tarde e trinta e dois graus na invicta. Tal qual uma onda de calor emanada do asfalto, a viúva atravessa a rua com a subtileza dos infernos disfarçados. Velhos e novos derretem, porque um corpo assim naquela idade só lhes aparece em sonhos ou na televisão. Será, por milagre, ainda fértil? Aquela cintura merece bem o aperto de um braço viril, as costas descobertas estão mesmo a pedir uma língua sôfrega que as trepe até à concavidade da nuca e dali volte a descer até encontrar um tesouro, as nádegas portam-se como as da adolescência, afirmativas e despudoradas, e a viúva sabe muito bem usar nelas vestidos de padrões excêntricos que provocam vertigens ao andar. Ah, tantas curvas perigosas, tão boas de ver, quanto mais de mexer, se ela deixasse! Mas ninguém lhe conhece namorado, amante ou sequer amigo de maior intimidade que ao menos apimente as suas noites sem ficar para o almoço. Que pena gastar-se assim uma viuvez tão graciosa nas mãos de ninguém – hão de suspirar os homens ao revirar os olhos.
Dois caminhos opostos podem ter desembocado neste destino de provocação e distância que a viúva aparenta quando sabe que estão a vê-la passar: ou foi tão feliz com o falecido que por menos não se dá (um coração habituado ao luxo não vai estremecer com pechisbeque), ou, ao contrário, tão desgraçada viveu no casamento que não arrisca repetir e aplica a vingança nos homens sobrevivos, atiçando vontades que não faz tenções de saciar. 
A mãe da rapariga da papelaria, a quem a morte do marido precipitou numa existência de solidão e pessimismo, diz que a viuvez não é um estado civil, é um peso que uma pessoa carrega para o resto da vida. Quando a viúva passa, vira-lhe a cara. Acha-a ordinária e ofensiva. Se não quer refazer a vida, que necessidade tem de andar a exibir-se? pergunta, a fechar com ambas as mãos o casaquinho de malha cinzento sobre o peito há tanto tempo abandonado. Com este calorão, só pode estar doente.