30.10.20
27.10.20
23.10.20
21.10.20
Nunca os Pereira sonharam depender tanto dos humores de uma rapariga vinda da província para hastear a bandeira do feminismo e da independência precisamente ali, na casa onde estava tudo tão betonado que nem as traições faziam grande mossa (as birras levadas a cabo pelas manas não entram na contabilidade, já que se fizeram e desfizeram com mais ligeireza do que as da primeira infância). Sequer os avós Pereira imaginavam que aquela que lhes deu a maior graça das suas vidas ao abençoar a família com uma descendência viril poderia ser outra coisa senão o que até agora tem sido: uma mãe sensata, inteligente, disposta a salvaguardar as necessidades e direitos do filho, contribuindo de forma exemplar – e sabe-se lá com que sapos atravessados na garganta – para que Joaquim construa por si uma relação com a família paterna, de valores tão opostos aos dela.
17.10.20
No dia em que cessar o meu contrato de fertilidade com o corpo, farei um luto orgulhoso sobre o qual dispenso consolo. Toda a ideia de envelhecer me repugna, de forma alguma nos outros, mas apenas em mim mesma. E digo-o com a verdade a que tenho direito e que ninguém pode censurar, nem em nome dos paninhos quentes com que se disfarçam as inconveniências de viver.
15.10.20
Hoje a rapariga da papelaria não vem trabalhar. É o aniversário de Alicita, lembra-se?, pergunta-me a avó, que está a fazer as vezes da filha no atendimento. Como não? A menina, nem três mil gramas de gente e ainda assim teimosa, fincou os pés no ventre materno, sair só à força de bisturi ou pela mão de um carrasco. Alicita não havia de querer fazer sofrer a mãe, mas fez. Submeteu-a a tantas horas de espera, dor e sufoco, que deu tempo de acordarem dois sóis. Da cesariana, a rapariga saiu a jurar que nunca mais, julgando, na legítima e conveniente ingenuidade de quem sobrevive ao esforço de parir, que o pior da maternidade ficara para trás, no bloco, diluído em sangue, placenta, líquido amniótico e outros destroços animais. Um dia, a mãe contará à filha sobre esse quinze de outubro de dois mil e dezassete. De como, na manhã seguinte, enquanto ambas restauravam, docemente, sem mágoa, os estilhaços da violência que atravessaram juntas e se entregavam à placidez daquele amor acabado de inaugurar, as gordas dos jornais escancaravam o inferno e a vergonha no balcão da papelaria.
14.10.20
Agradeço a quem se aflige por me supor infeliz no trabalho e na vida em geral, mas é preocupação injustificada. Não devem confundir-se as linhas que escrevo com as que tenho na palma da mão. Já o disse noutras ocasiões: não faço disto um divã, tampouco um diário, falta-me vocação para o esbanjamento da minha intimidade e seria demais presumir que ela importa a outros além dos que me são próximos. Isto é só um caderno de exercícios onde me agrada alinhar as irregularidades da vida ou chupar-lhe os ossinhos, consoante os dias e a disposição. Lançar, de vez em quando, um olhar irónico sobre a minha própria realidade, desarrumar a minha paz e reduzir a nada os meus privilégios, faz parte do mais fundamental desses exercícios.