30.10.20

Da maneira que isto está, já deviam ter-nos mandado todos outra vez para casa, diz a professora que vive com três gatos pretos e um ror de tralha acumulada, enquanto toma o café em goles lentos, a máscara suspensa numa orelha, o ar sedado do costume.
Consigo facilmente imaginá-la trancada por longos dias, do quarto para a sala, da sala para a cozinha, da cozinha para a sala. O silêncio alivia-a tanto que se emociona. Nas cristaleiras tinem serviços de pechisbeque, souvenirs das férias pela Europa com o ex-marido e o rapaz, objetos avulsos sem serventia, porta-chaves, moedas de escudo, esferográficas secas, rolos fotográficos, pins. Nos armários, jogos de lençóis coçados, fronhas sem par, vestidos e casacões que deixaram de servir depois da cirurgia, roupa de quando o rapaz era pequeno, fantasias de carnaval, chapéus de inverno, de praia e de chuva. Nas estantes, os peixinhos-da-prata banqueteiam-se na desarrumação das capas de dossier, cópias de fichas e manuais, faturas, cartas, comprovativos, requisições, calendários, agendas, cadernos de receitas, álbuns, jornais velhos, revistas de moda passada. No chão, literatura em montículos de dúzia serve de mesa de apoio a candeeiros, velas e correspondência por abrir. Ela contorna tudo com a sua obesidade cinzenta e um desalento clinicamente comprovado, sem tropeçar nos gatos que lhe rodeiam os tornozelos a cobrar festas.
Ainda em jejum, acende um cigarro, mira o prédio defronte, o alinhamento das marquises traseiras, as roupas abertas nos estendais, os vasos desbotados pelo sol, o padrão exposto das vidas comuns. Afaga os bichos por hábito e instinto, põe-lhes comida, recolhe as fezes. Almoça lasanha requentada e uma maçã para limpar. Liga ao rapaz, que agora vive em Barcelona com uma irlandesa de humor magnético e tão elegante que mete nojo. Enquanto toma café na varanda, roga pragas aos que desafiam a autoridade e saem à rua, deviam ter sido educados com mão firme, o mundo assim não vai a lado nenhum. A professora esqueceu quão insurretos, sujos, torturados, viciados e imensos foram os autores dos poemas que leva para os alunos e que não lhes interessam porque ela não lhes conta das fragilidades, não lhes diz que eram pecadores, que tinham pesadelos e desejos ingovernáveis. Fala deles como deuses e a juventude não precisa de religiões. 
À noite, com os dedos muito ágeis entre as coxas, a professora fantasia versões alternativas ao amor que conheceu e lhe falhou. Para descolar da memória a imagem dos adolescentes eufóricos, cheios de ganas e saúde, lembra versos censurados de Bocage  ao menos é Bocage. No fundo da cama, os três gatos pretos assistem à demora do êxtase.

27.10.20

Como a generalidade dos homens da sua geração, o senhor Pereira trata as próprias dores com mão firme, mordaça e perpétua clausura. Isso explica o ar ligeiro, quase feliz, com que apareceu no pão quente para comprar uma roca. Só de olhar, ninguém diria: a sua mãe ainda agora morta, o seu casamento um moribundo de plumas, as filhas sempre amuadas, o filho uma pasta de gente amorfa cuja única grande realização – Joaquim – foi por acidente, a imperatriz a preparar-lhe o mais duro de todos os golpes. Mas a farsa é uma arte aplicada com muito brio ao sentimento familiar, nenhum outro teatro se lhe assemelha em magnificência e duração. Uma família pode manter-se anos e anos em palco, brilhando nos papéis atribuídos, sem hesitar numa deixa ou tropeçar nas pontas soltas da vestimenta. Enterra os seus cadáveres com vergonhas e passados inconvenientes, tudo junto e embrulhado em arranjos florais, e vai acenando, à boca de cena, como se nada fora. Tantas são as mágoas que podem atormentar um ser humano comum e, de todas, a que mais o envergonha é a deriva da sua família, o fracasso do seu ideal.

23.10.20

Ah, minhas senhoras, eu faço tudo, tudo, pelos vossos filhos, falou o jovem diretor de turma dando um jeito distraído ao cabelo. Pelas vinte quadrículas do écran multiplicou-se um risinho de clandestina satisfação, deleite ou luxúria. Parecia ter caído um daqueles aguaceiros benfazejos de verão, que aliviam as securas do mundo, soltam a terra, despertam as corolas. Depois de um pediatra sensível e paciente, não há como um professor dedicado para superar certos maridos.

21.10.20

Uma desgraça nunca vem só e para confirmar estes e outros ditos vê-se, uma vez mais, a família Pereira abalada na sua folclórica estabilidade. Bom, talvez não se possa chamar desgraça ao natural apagamento de uma vida quase centenária. A velha muito velha foi-se em fim de tempo, como é próprio do que, por sorte, escapa no caminho a acidentes e agressões. Desgraça, isso sim, foi a decisão tomada pela imperatriz e anunciada no rescaldo do luto. 
Nunca os Pereira sonharam depender tanto dos humores de uma rapariga vinda da província para hastear a bandeira do feminismo e da independência precisamente ali, na casa onde estava tudo tão betonado que nem as traições faziam grande mossa (as birras levadas a cabo pelas manas não entram na contabilidade, já que se fizeram e desfizeram com mais ligeireza do que as da primeira infância). Sequer os avós Pereira imaginavam que aquela que lhes deu a maior graça das suas vidas ao abençoar a família com uma descendência viril poderia ser outra coisa senão o que até agora tem sido: uma mãe sensata, inteligente, disposta a salvaguardar as necessidades e direitos do filho, contribuindo de forma exemplar  e sabe-se lá com que sapos atravessados na garganta  para que Joaquim construa por si uma relação com a família paterna, de valores tão opostos aos dela. 
Não haverá muitas capazes de um malabarismo tal e a quem passe ao lado a tentação mesquinha de entrar com as desavenças, os rancores e as faturas na educação dos filhos. Porém, a imperatriz é pouco dada a rivalidades estéreis, além de que Joaquim não é para ela um troféu, um instrumento ou uma salvação, mas um feliz incidente, uma trapaça do corpo, enfim, um delicioso acaso. E a pureza dos acasos  porque não são delineados ou corrompidos por nenhum projeto ou ambição, porque desafiam a vontade e a convertem   é um valor a preservar. De resto, o amor que a imperatriz tem ao filho justifica os esforços e as concessões. Por ele, suporta os Pereira e o seu desejo de atribuírem a Joaquim a responsabilidade de desfazer o sarilho de disparates e conveniências em que vivem. 
Nós, que assistimos a rir e pensamos que seria de outro modo caso fossemos os protagonistas, ainda assim comovemo-nos ao ver o senhor Pereira desmoronar-se diante do neto. Pese embora o machismo subjacente a este afeto privilegiado, sempre tivemos fé de que daqui viesse uma revolução de lógicas e princípios capaz de destituir a frieza da autoridade vigente e abrir caminhos novos, mais apaziguados para toda a família, onde até as manas se sentissem mais ouvidas e amadas e o mano inútil ganhasse finalmente um brilho próprio. Mas a vida, enfim, dá as voltas que sabemos e apanha-nos na curva, quase sempre distraídos e de mãos nos bolsos.

E toda esta conversa para quê? Os factos, sendo o que são, não podem ser amenizados nem evitadas as suas consequências só porque fazemos esta resenha de prós e contras, com perspetivas e contrapontos. Mandar a razão à frente para aplanar terreno a ver se suaviza o derrapanço, nem sempre resulta. Mas a verdade é que também a mim me custam certos episódios e adio a hora de os contar. E ter dito logo, a frio e à cabeça deste texto, que a imperatriz vai voltar a viver em Penedono e leva com ela Joaquim, como se viesse a propósito ou fosse coisa menor, não me parecia bem. Não me parecia nada bem. 

17.10.20

No dia em que cessar o meu contrato de fertilidade com o corpo, farei um luto orgulhoso sobre o qual dispenso consolo. Toda a ideia de envelhecer me repugna, de forma alguma nos outros, mas apenas em mim mesma. E digo-o com a verdade a que tenho direito e que ninguém pode censurar, nem em nome dos paninhos quentes com que se disfarçam as inconveniências de viver. 

15.10.20

Hoje a rapariga da papelaria não vem trabalhar. É o aniversário de Alicita, lembra-se?, pergunta-me a avó, que está a fazer as vezes da filha no atendimento. Como não? A menina, nem três mil gramas de gente e ainda assim teimosa, fincou os pés no ventre materno, sair só à força de bisturi ou pela mão de um carrasco. Alicita não havia de querer fazer sofrer a mãe, mas fez. Submeteu-a a tantas horas de espera, dor e sufoco, que deu tempo de acordarem dois sóis. Da cesariana, a rapariga saiu a jurar que nunca mais, julgando, na legítima e conveniente ingenuidade de quem sobrevive ao esforço de parir, que o pior da maternidade ficara para trás, no bloco, diluído em sangue, placenta, líquido amniótico e outros destroços animais. Um dia, a mãe contará à filha sobre esse quinze de outubro de dois mil e dezassete. De como, na manhã seguinte, enquanto ambas restauravam, docemente, sem mágoa, os estilhaços da violência que atravessaram juntas e se entregavam à placidez daquele amor acabado de inaugurar, as gordas dos jornais escancaravam o inferno e a vergonha no balcão da papelaria.

14.10.20

Agradeço a quem se aflige por me supor infeliz no trabalho e na vida em geral, mas é preocupação injustificada. Não devem confundir-se as linhas que escrevo com as que tenho na palma da mão. Já o disse noutras ocasiões: não faço disto um divã, tampouco um diário, falta-me vocação para o esbanjamento da minha intimidade e seria demais presumir que ela importa a outros além dos que me são próximos. Isto é só um caderno de exercícios onde me agrada alinhar as irregularidades da vida ou chupar-lhe os ossinhos, consoante os dias e a disposição. Lançar, de vez em quando, um olhar irónico sobre a minha própria realidade, desarrumar a minha paz e reduzir a nada os meus privilégios, faz parte do mais fundamental desses exercícios.

12.10.20

Por baixo do vestido de festa, a carne podre. E eu trabalho de costureira, das nove às seis, exercitando o pesponto miúdo, cobrindo tudo de sedas e rendas finas, cerzindo com fio dourado as malhas caídas e pregando o acabamento em lantejoulas. Depois, sacudo dos ombros a minha consciência suja, deixo-a ficar na cadeira de escritório e volto para casa com o sono, a disposição e o apetite intactos.
Quando em jovem eu bradava que jamais me venderia, mal sabia quantas formas há de nos comprarem. Também em mim, concluo, assentam bem certos vestidos.

9.10.20

"Novo normal" é uma das mais patéticas expressões que a contemporaneidade inventou, uma espécie de quinquilharia sociológica que nos últimos meses se usa, como se fosse uma joia, no comentário, na conclusão e na aceitação. "Normal" já era vocábulo com pouca coisa lá dentro, de uso tão amplo, diverso e vago que serviu e serve de igual modo todas as correntes, culturas, ciências e religiões, e ampara sentimentos que podem ir da repulsa – credo, isso não é normal – até à desvalorização – deixa lá, isso é normal. A ambiguidade do "normal" vê-se na facilidade com que sempre foi trabalhado como plasticina, gerando enganos, negligências, marginais, doentes, frustrações, desconfianças. Precedê-lo do adjetivo não lhe dá uma feição diferente, mais firme ou concreta, nem torna intrínseca a moral que jamais lhe pertenceu mas de que sempre se dourou. Mas ao evitar que notemos o seu oposto - o anormal -, o "novo" amacia os nossos espíritos e convida-nos a instalarmo-nos sem reservas.

6.10.20

É uma dessas manhãs em que, sem outro motivo além da consciência de existir, venho pela rua a fazer o inventário dos meus privilégios, cantarolando, exercendo a vida com tudo o que por sorte me foi dado ou por empenho conquistei. Por isso é grande a estocada quando vejo a mãe dos filhos com olhos de azeitona preta, que não via desde que nos fechamos todos em casa. Vai sozinha, ao contrário do hábito. Durante anos e anos fez aquele percurso a carregar duas crianças, mais tarde carregando uma e arrastando outra, ultimamente apenas de mão dada com a menina, porque o rapaz seguia à frente, apressado para ser homem. Do bairro à escola, da escola ao bairro, numa comovente obediência ao seu destino, aquela mãe precoce a quem nunca escutei uma palavra, de pernas grossas e joelho valgo, que todos os dias enviúva do mesmo delinquente, jamais se atrasou ou fez outro caminho. Porém, os filhos com olhos de azeitona preta prescindem agora do abrigo e da boleia do seu corpo. Cresceram, estão expostos às próprias possibilidades de corrupção e infortúnio, são jogadores autónomos na lotaria da vida, vamos esperar que encontrem um caminho para lá da miserável condição em que nasceram.
Chego a casa e não tenho apetite. O mais velho preocupa-se, o que tens? E quando digo quem vi pede-me que não conte, pois sabe que também pousará os talheres. Ah, felizes os que andam entretidos na sua roda viva e dormitam na sua quietação murada e praticam opiniões diante dos cortejos televisivos e só conhecem a tragédia de a folhear em verso e salivam sobre a fartura das suas mesas e doam os excessos porque precisam de limpar armários. Aproveitem, porque a felicidade que há no mundo é pouca e distribuída de forma mais desigual que o dinheiro. Têm-na toda os deuses e um ténue vislumbre dela os humanos. 

1.10.20

À porta da escola secundária por onde passo todos os dias a pé, vibram de novo as energias apaixonadas da adolescência. É a vida a tentar recompor-se, a sacudir a poeira da sua hibernação, a reacender os projetores, a desatar as engrenagens. Naquele formigueiro vejo acontecerem, nuns casos por descuido, noutros por vontade, todas as coisas que o pavor demonizou – beijos, abraços, sussurros, rodas de convívio – e alegro-me com isso, como se respirasse fundo ao vir à tona de um pesadelo. Mas logo me culpo pelos meus sentimentos e decido não conversar sobre isto com ninguém, sob pena de a censura popular, que é rígida no pensamento e rápida no gatilho, me acertar o passo. Que tristes nos tornamos. E pobre juventude, esta, que já não sabe o que dela se espera. Até agora criticados, desvalorizados na sua inteligência e sensatez por passarem demasiado tempo nos telemóveis, acusados de só investirem em vidas virtuais, escutando sermões sobre os convívios de antigamente. E veja-se a ironia do destino, o mistério das voltas do mundo: condenados de repente pelos hábitos justos, sãos, humanos, pela vida real que a sua natureza pede, que o corpo precisa, que a alma merece. Enfim, de uma forma ou de outra, ser-lhes-á imputada a culpa pelo fim do mundo. Por onde quer que sigam, seguem em contramão.