Desconfio sempre de quem se mete a definir o amor e porque o vive ou viveu, nele se arruinou ou se salvou, atribui-lhe um alfabeto linear e organiza-o com suposições universais, julgando ter desvendado todos os seus segredos e propósitos e sobre isso criando máximas, filosofias, teoremas, carapuças de tamanho único e o mais que vale tanto como um sopro do vento. Sou avessa a definições. E, acima da definição, aborrece-me quem define. Eu, nem que quisesse teria como dar verbo aos magníficos lugares onde vi o amor chegar. E só um grande desentendimento do mundo poderia fazer-me supor que o que vale para mim vale para todas as almas em todas as camas e todas as casas de todos os tempos.
30.9.20
25.9.20
Eu, pra mim – diz a rapariga da papelaria, exalando uma energia tão adolescente que me pergunto se andará mouro na costa – o que me interessa é a generosidade, não há nada mais sexy num homem do que vê-lo tirar a camisa do corpo para dar a outro. Não acha? atira-me a sangue frio. Ora, isso depende do que há por baixo da camisa, digo sem ter a certeza de que ela me entende. Por vezes também caio na asneira, injustificada, de a julgar tola só porque tem um coração destrambelhado, que se despistou na primeira curva e não há meio de tornar ao caminho. Eu, pra mim, o mais atraente é a coragem moral, acrescento. Homem que a tenha como virtude revela sempre um peito largo, umas costas verticais e até uma ou outra cicatriz de combate. Ela suspende o movimento das revistas no balcão: e conhece muitos assim? Por culpa da máscara, que me priva da sintaxe completa do seu rosto, não consigo perceber se é de dúvida ou ironia o olhar lateral que me deita. E, a jogar pelo seguro, desconverso com o pretexto da falta de trocos.
24.9.20
Pela manhã, duas mulheres despedem-se de um encontro casual junto ao mercado:
– Um dia destes, quando tiver um bocadinho de ocasião, ligo-te.
Não fosse a ocasião já de si uma unidade mínima, ainda a podemos dividir em quantas partes forem precisas para nos salvarmos. A vida cada vez mais fragmentada, porque o tempo é breve e a pressa é muita. Mas, quem sabe, vasculhando o fragmento do fragmento do fragmento alcançaremos o infinito sem termos investido o esforço de ir lá longe. Procure-se mais adentro quando não pode conquistar-se mais além.
23.9.20
18.9.20
Sonhei que uma ninhada de ratos passeava livremente sobre a nudez de uma bela rapariga holandesa. Fosse viva, a minha avó levantaria o sobrolho e andaria pela casa a arrastar os chinelos e a dar corda ao pensamento, perguntando-se de quem seria a gravidez encoberta. Era o que dizia o senso popular ou talvez Freud – e hoje em dia provavelmente também o google: sonhar com ratos prenuncia a chegada de um bebé. E essa hipótese intrigá-la-ia ao ponto de desvalorizar a quase obscenidade que o meu cérebro marinara nos braços de Morfeu. A verdade é que todos os que sonham, sonham disparates, impossibilidades, absurdos, e muito pouco do que se sonha é confessável. A melhor forma de dignificar um sonho ou de evitar que ele me faça cair no ridículo, é escrevê-lo como se fosse uma coisa séria. É questão de lhe retirar cuidadosamente as incongruências como as espinhas ao peixe, de modo a deixar o filete intacto e ainda apetecível.
Medonho, isso sim, é o sonho coerente, o que avança pela noite com a lógica e o alfabeto das coisas reais. Uma vez, por exemplo, matei um homem para proteger a minha irmã. Usei um punhal e matei-o de frente, olhos nos olhos. Lembro nitidamente a sensação, lembro todas as consistências e temperaturas, a força que fiz, a resistência da carne, o jorro morno de sangue, a meia volta que dei à lâmina, primeiro num sentido, depois no outro. Nada me custou ou doeu pois tinha o pensamento na salvação da minha irmã. Andei durante semanas a cismar na frieza quase profissional com que castiguei o malfeitor, perguntando-me como pode uma alma pacífica e sem cadastro praticar enquanto dorme um crime assim, sem pena nem hesitações.
17.9.20
Isabela deu o que tinha a dar. No fim de agosto, já todas as suas pétalas eram caídas e a haste estava seca. Penso, comovida, naquelas treze flores perfeitas, macias, e entendo o assomo de vaidade que acabou por corromper a inocência da minha orquídea. O primeiro a cair na armadilha da beleza é o seu autor. Agora, porém, Isabela está apenas a submeter-se aos ciclos da vida, que ainda que tardem não falham, e resta-me depositar a fé no ninho de folhas sobrevivas junto à raiz, ainda muito verdes e carnudas. Dizem que enquanto as há, há esperança e talvez na volta da primavera se dê um milagre.
Noutro dia, a cabeleireira disse-me que tenciona decorar toda a montra do salão com orquídeas. Acho-as imensamente femininas, e ao advérbio deu um tom afetado que me surpreendeu, talvez o imite a alguma cliente ou a uma figura da televisão. Pois o mal é esse, comentei. Tão depressa vemos nelas a graça que temos – em formas, feitios e feitiços – como num instante nos revelam a ruína que nos espera. Aconselhei-a a esquecer as orquídeas, que assustam espíritos fracos como o meu, e sugeri-lhe samambaias. Parecem-se muito com cabeleiras e são por natureza tão descontraídas e desarrumadas que passa, sem se notar, qualquer imperfeição ou assimetria. Não dão flor mas também não causam penas.
14.9.20
Gastei boa parte do fim de semana a ler os planos de contingência de estabelecimentos de ensino. Esforço-me por ser uma boa mãe e cooperar com o sistema, mas quase sempre embato com dor contra a generalidade das condições, dos métodos, das prioridades, das competências, pouco me importando quem governa porque o mal é de pensamento estrutural e não de conjunturas, partidos ou mandatos. Este ano, a pandemia vem aumentar o prejuízo e a fatura é sempre entregue à porta dos inocentes. Conselho amigo lembra-me que não haverá sofrimento de maior porque os miúdos habituam-se a tudo num instante, também hão de habituar-se a circular como gado, a não emprestar os seus livros e lápis, a não dizer segredos, a evitar paixões desnecessárias e fugazes, a dominar movimentos por instinto, raiva ou desejo. Mas isto, ao invés de consolar-me, agrava o meu desassossego. Eu não quero os meus filhos habituados, nem a isto nem a coisa alguma. Criei-os para que vivessem despertos, lúcidos, corajosos e inteiros e investi muito para que jamais confundissem a cooperação e o respeito com a obediência. Mas se o cenário é este e se o futuro não aparenta ser outro, o mais provável é que eu tenha cometido um erro.
12.9.20
Morreu Shere Hite, que pesquisou e escreveu sobre aquilo de que a generalidade dos homens entende menos do que julga e com que a generalidade das mulheres está menos feliz do que confessa. Desta morte, como era previsível, não se tem falado muito por aí. Afinal, oh, que atestado de superior cultura e erudição confere dar mostras de estar a par de tal coisa?
11.9.20
10.9.20
Ao cabo de dois meses de veraneio, o mais novo regressou a casa com mais um palmo de altura, uma tez de criatura nómada e cogitações à roda de assuntos diversos que ficam melhor só entre nós. Para o receber fiz tudo o que ele gosta, panquecas americanas, sopa de beterraba e lentilhas vermelhas, fusilli com camarão, feta e manga, comprei bilhetes para o cinema, preparei óleo de massagem. Assim que o acomodei na insuficiência do meu colo, a Terra, que por hábito e ironia ameaça resvalar à força de delírios vários, sustos e combates, foi de novo trazida à órbita. A sua disposição grata, compassiva e luminosa – igual não conheci em mais ninguém, adulto ou criança – demove todos os fantasmas e dilui no tempo infinito a gravidade de cada segundo que passa. Quem terá abençoado a hora acidental, inadiável, em que foi feito?
8.9.20
Quando atendo, do outro lado da linha chega a voz amarrotada de um velho, olá minha linda, estranho e repito estou, sim, então é a vez dele estranhar quem fala? e como resposta eu pergunto com quem pretende falar? Ele cheio de hesitações, infantil, eu queria falar com a minha filha. Mal dou pelo absurdo quando lhe respondo é engano, eu já não sou filha de ninguém.
4.9.20
Quando um determinado discurso de desagrado prevalece na sociedade ou num indivíduo ao longo de muito tempo sem que nenhuma mudança daí advenha, das duas, uma: ou é porque não reflete um pensamento real, profundo, mas apenas um hábito de dizer ou copiar ao pensamento alheio, um fechar conversa de circunstância, ou então é porque, na verdade, a mudança não é desejada. Penso nisto, por exemplo, quando ouço a professora que vive com três gatos pretos e um ror de tralha acumulada, na ladainha do costume ao balcão do pão quente: eles agora não pensam, os miúdos não pensam, ponto final! Um dia destes, se acordo indisposta, pergunto-lhe que pensadores tem o sistema de ensino ao seu serviço.
2.9.20
Morreu a mãe do senhor Pereira, a velha muito velha de feitio retorcido que passou aqui uma vez, apoiada no perdão do filho e na condescendência da nora. Há quem reclame da falta de justiça divina: viveu demais para os estragos que fez, já devia ter ido há muito. Foi sempre tesa como um arco de flecha pronta, fria como gelo, azeda como leite esquecido, enxotando beijos e abraços como moscas. Reza uma lenda – de restrita disseminação – que deu uma tareia ao marido, ela nunca confirmou nem desmentiu mas a fama foi-lhe útil para dissuadir oportunistas e toda a espécie de parasitas. Cobrou cada desobediência do filho imprimindo-lhe a fatura em cheio nas nádegas. Por vezes afrouxava, dando sinal de alguma benevolência ou compreensão, e então o Pereira menino, recuperando os plenos poderes sobre a sua infância, logo se metia em sarilhos ou caía nalguma leviandade e entornava o caldo. A velha muito velha tinha a astúcia do verdadeiro ditador, que mantém a oposição viva, em lume brando, com folga ligeira na corda, e espera dela o descuido, o erro, para reforçar o seu poder e lembrar que o aquele que facilita e autoriza é o mesmo que dá a vergastada.
Morreu de nada mais do que cansaço, durante a noite, deitando por terra a ideia de que os maus sentimentos fazem germinar todo o tipo de doença. Apagou suavemente como um pavio esgotado. Paz à sua alma, que deve estar precisada.
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