30.8.20

O que me vês fazer com o sabre, não tentes deter, desfazer ou igualar com a faca da manteiga.

27.8.20

Afinal é avenida ou alameda? perguntaram-me, a tirar satisfações acerca do mapa deste blog, porque ora falo numa, ora noutra. Não é erro, tenho ambas: uma avenida e uma alameda. Também tenho, como sabe há muito quem por aqui circula, uma praceta, uma rotunda, uma marginal, uma rua que sobe para norte e desce para sul, além de um pão quente, uma papelaria, um cabeleireiro, um mercado, uma paragem de autocarro, um elevador, um altar a Buda. Houve em tempos um lavadouro público, um prado, um tasco que expulsava bêbados às dez da manhã. Vulgaridades, nada a fazer, o mundo repete-se em cada quarteirão como em cada blog, ainda que mudem as formas, o estilo e a voz da sua expressão e por mais que outros nomes se inventem para o que outra coisa não é. 
E este mapa, por onde o meu quotidiano deixa pegadas, cumprimentos, moedas e considerações – e que é real nas suas artérias, curvas e vistas – basta-me, porque nele vejo tudo o que me importa dizer. Se eu quisesse saber e contar mais, oh, teria de forçar fechaduras, abrir camas, farejar lençóis, vasculhar telefones, meter as mãos no lixo, violar correspondência. Mas aí só se chega com muita ousadia ou muita imaginação, dons que os astros raramente concedem aos filhos do solstício de inverno. 

26.8.20

Esta noite sonhei que a avenida se tinha tornado um antro de desvalidos. Tive de a atravessar de ponta a ponta para chegar a casa e por todo o lado vi gente a quem não sobrava força nem para levantar a cabeça contra o vento. Havia de tudo um pouco, todo o tipo de desgraças, vícios, amputações e azares, e eu passei olhando a medo, de viés, sem saber se mais lhes devia atenção ou indiferença. É preciso cuidado com a dor dos outros, ela tem a sua dignidade e, por isso, a sua vergonha. Por vezes, julgando estar a consolá-la estamos a insultá-la, a arrancá-la ao recatamento desejado, a desvalorizá-la com lugares-comuns, banalidades, conselhos que só dá quem pensa que por ter provado a sua dose sabe das doses dos outros. Os deuses encarregam-se de a cada alma atribuir os seus tormentos, não há lençol que não tenha o vinco da volta que mil vezes se deu na cama pela noite dentro, mas no modo de sentir ninguém se iguala. 

(Talvez este cenário e pensamentos afins se tenham enredado no meu sonho por ter estado ontem a ler sobre Aokigahara. Ao adormecer baixei a guarda e fez-se à vontade e em abundância o tráfico de dados e emoções através das fronteiras da minha consciência.)

Chegada ao fim da avenida, entrei com alívio na casa que supus ser a minha e ao cimo das escadas esperava-me a velha de Santiago, muito ereta, proprietária, com um olhar desumanizado. Notou que estremeci ao vê-la e com isso ganhou vigor pois é onde o sangue mais fraqueja que os poderosos cravam o sustentáculo dos seus palácios.
– Isto são horas de chegar? perguntou em português limpinho. 
Percebi então que era uma menina desaninhada, longe de colo e família, a viver de favor em casa alheia. Segurei a raiva, deixei que a galega virasse costas e acordei.

24.8.20

Dorme, dorme, que dormir é meio sustento e o tempo passa mais leve. Talvez fales e te agites e te vires e revires e transpires e julgues e insultes e te rias e na carne sintas o êxtase sonhado e podem até os teus olhos abrir-se e parecer atentos por se fixarem nas coisas concretas ao redor, mas ainda assim, não o sabendo, estarás a dormir profundamente. Dorme, dorme, que do teu sono tiras conforto e outros tiram vantagem.

21.8.20

À mesa, debaixo de um céu de estrelas, numa varanda para o mar ou em qualquer outro poiso de prazer e contemplação, eu e o mais velho ficamos amiúde à conversa sobre as fontes de mistério que há no universo ou sobre as bizarrias da condição humana. De mim, o rapaz voador herdou todas as imperfeições e do pai todas as virtudes, por isso o amor que lhe tenho é compassivo e fascinado ao mesmo tempo. Quando conversamos, procuro evitar que a minha sensatez contamine a doçura dos seus sonhos ou arrefeça o furor das suas convicções ou ponha um freio criminoso ao galope das suas ideias. A juventude é magnífica e nisto que digo não há ironia ou sequer paternalismo, só inveja, dessa que os deuses castigam e a que os humanos viram a cara na rua por receio de se descobrirem dela aparentados. Nada se ganha com a maturidade, a não ser a eficiência com que voluntariamente encaixamos na engrenagem e comparecemos no quotidiano de escravos. O resto são eufemismos. 

20.8.20

Na peixaria, Elisabete amanha dois robalos para levar à sôtora Lurdes que, por alegar ocupações muitas e diversas, pede a entrega das compras em casa sem acréscimo à fatura. Enquanto chafurda nas tripas, Elisabete conta histórias para entreter a freguesia, evitando que vão fornecer-se a outro lado pelo cansaço de esperar. Hoje é sobre uma vidente muito conhecida para os lados de Aldoar. Empossada da sabedoria de mundos paralelos e ocultos, cujas lógicas só uns poucos eleitos dominam, anunciou-lhe a vidente há mais de quinze anos que ela havia de morrer seca e veja-se como, apesar de vontades e esforços, Elisabete desconhece as graças da maternidade. Julguei que fosse a freguesia assustar-se, benzer-se, esconjurar demónios, mas antes noto entusiasmo para saber onde encontrar a vidente. 
Ao ver-me, porém, Elisabete sobressalta-se como a criança apanhada a transgredir e sorri a desculpar-se. São coincidências e prontos, não é? A menina que estudou deve saber. Coincidências e prontos, repito com propriedade e um gesto brusco da mão. Ela ia gostar de saber que há muitos anos, a custo zero e por brincadeira, uma rapariga abriu-me a palma da mão e tudo o que nela leu trágica e rigorosamente se cumpriu num médio prazo. A única profecia que ainda tenho por comprovar é a de que terei uma vida longa. Aguardemos para ver. Se a rapariga apenas leu o que em mim já estava escrito de nascença ou se por dizê-lo em voz alta naquele mesmo instante o escreveu, não sei. Mas Elisabete e eu já decidimos que, de qualquer forma, são tudo acasos. Ela com os seus robalos, eu com os meus estudos, convergimos nisto e talvez no que ficamos a pensar e não dizemos.

18.8.20

Para não macular a calça branca de prega, apropriada ao usufruto do pôr-do-sol em zona chique, a rapariga manda ao filho que projete bem os quadris adiante. Aflito para se aliviar e com fraco domínio da ferramenta que segura entre os deditos, o petiz procura direcionar o jato de urina de maneira a não ir contra o vento nem contra as advertências da mãe. Está na beira do passadiço, tem a metade dos pezinhos já sobre o vazio, o ímpeto desgovernado de uma cascata a sair-lhe do corpo e o sermão a martelar-lhe os ouvidos  – que lindo se vestiu hoje o meu príncipe, não se suje, por amor de Deus, chegue-se mais para a frente. Na ânsia de lhe salvar o traje, é a própria mãe que o empurra mais um bocadinho em direção ao desastre. E bem antes do alívio completo, o menino esbardalha-se, de braços abertos e rabinho ao léu, no charco abundante da sua urina. Envergonhada, a mamã levanta-o à bruta por um braço e sai a correr. Já não é hoje que apresenta o filho a preceito nos teatros lotados de agosto. 

7.8.20

É estranho, mas ninguém levanta a cabeça quando soa o alarme, estridente, aflitivo, sobre o torpor matinal das ruas da cidade. Como se habitassem outro mundo que não este, prosseguem as suas conversas sobre coisas que não apanho, outros escutam música ou consultam o e-mail. Porém, à mais ligeira, subtil, vibração de um smartphone, reagem como as galinhas que, absortas no bicar compassado do milho rasteiro, erguem de repente os pescoços e viram-nos, ora para um lado, ora para o outro, numa curiosidade robótica, passageira e, por isso, verdadeiramente inútil. 

5.8.20

A rapariga da papelaria desce a rua de cara amarrada e naquele passo veloz que se usa para gastar num instante a raiva toda. Motivos, lá os terá e faz bem em calá-los porque com o mal de uns enchem às vezes outros o bandulho. No caso dela, porque exala um cheiro intenso a abandono e desistência, é um fermento para a imaginação alheia e inspira todos quantos vivem de dar conselhos como os que treinam da bancada – que não perca mais tempo com essa dor, cuide de si, vista outra coisa, olhe em frente, dê-se a outro homem. Então não pode cada um fazer da vida o que quer, comprometer-se com a sua melancolia, cismar nas suas mágoas, mastigar as suas lembranças ou até amputar os membros sãos se daí lhe vier paz? Quem é quem para dar à rapariga da papelaria a bula da felicidade, quem chegou ao ponto em que, de tão feliz, já só lhe resta morrer? A mãe, que nas palavras duras que lhe diz põe sempre a fatura dos seus próprios fracassos porque em vão sonhou que a filha havia de ganhar de sobra para pagar pelas duas? A cabeleireira, mais a sua moral entusiasta sobre os benefícios do sétimo sacramento com pensão completa e descontos ao marido? Gabi, santinha de pau oco e língua bífida, que revira os olhos nas costas das senhoras a quem desbasta as garras? O senhor Pereira, polidinho nas maneiras e remediado no caráter, mais a sua mulher que a vida toda o comeu requentado ao fim do dia, primeiro por ignorância depois por falta de saída? A viúva, que ninguém sabe se na verdade partiu com o homem que amava e agora ostenta apenas o que ficou para trás, como coisa que para ela já vale nada mas que ao menos dá, a quem olha, a felicidade de sonhar? A imperatriz, que não foi abandonada pelo pai do filho mas escolheu abandoná-lo, o que, enfim, revela a desgraça maior que é ficar aquém de amar? As manas Pereira, tão virtuosas e bem sucedidas, de íntimo atormentado pela ideia de que todos os homens – até os seus – possam um dia parecer-se com o pai? A dona Maria Isabel, doutora de ciências com a má fama de serem exatas, cuja independência e firmeza de emoções jamais permitiriam entender quem por amor se tenha desanimado tanto? As pessoas dos blogs, que nos seus estendais públicos deixam, sem vincos, belas cogitações teóricas sobre amores suspirados como o dela e outros tantos de romance e ideal? Eu, que jamais sequer amei dessa forma religiosa, sem identidade nem retribuição, e descarto as dores junto com o lixo ao fim do dia porque tenho repulsa a tudo o que dura demasiado?
Talvez, no entanto, nada de grave tenha havido com a rapariga da papelaria. Apenas um enguiço, uma avaria na máquina da roupa, os jornais que não chegaram a horas, Alicita a inaugurar o dia com uma birra daquelas. Coisas poucas, nada de nada, deus a polvilhar o quotidiano de misérias e cada um de nós a acreditar que tudo isto é muito mais, para justificarmos as angústias com que nascemos.

3.8.20

Podia ter-se começado a falar há muito mais tempo sobre a tragédia em que, a todos os níveis, vai desaguar o método de gestão da pandemia e do isolamento. Mas compreende-se a demora. Contra uma multidão possuída, que se acostumou a exercer a cidadania aplaudindo ou apedrejando a partir da varanda e que atingiu cúmulos de inspiração bíblica achando que o mundo estava a precisar disto, quem ia arriscar um e se? O medo não só distorce como aumenta a permeabilidade a tudo o que seja sustentado por um gráfico ou anunciado por um comité de gravatas e tailleurs. A partir daí, todos os que levantem dúvida são apontados como desumanos ou ignorantes e mal podem explicar as suas razões, a não ser que desembainhem um gráfico de igual envergadura ou saquem da cartola um doutoramento em qualquer coisa de tão rigoroso rigor que, enfim – oh, inutilidade do conhecimento adquirido! –, nem tem espaço para o imprevisto. 
Primeiro as pessoas, depois o resto, diziam os bravos da reclusão. Como se o resto fosse outra coisa que não pessoas. 
Passaram quase cinco meses e ainda me custa acreditar em tudo isto.

2.8.20

Que as pessoas interpretem o que está escrito à luz da experiência que têm é compreensível.
Mas que julguem quem escreve à luz da dor e do desejo que as atormentam é um perigo.