28.10.25

Hoje acordei contigo dentro de mim, escreve o homem da ilha, empenhado em atravessar o mar que nos aparta. O meu coração, que passa sempre ao largo das trapaças do romantismo, faz o cálculo às milhas, multiplica pelos dias, dobra a distância e encolhe os ombros. Bonitas palavras, sim senhor, mas a beleza do verbo apenas serve jogos, poemas e promessas, favorece a graça, a arte e a sedução. Com ela não se constroem pontes, nem se acalmam marés, nem se orientam lemes. Para esses fins, são necessárias palavras de sobriedade metálica e firmeza de rocha, precisas e robustas, que suportem o peso da dúvida, palavras de que o vento se desvie por respeito e reverência. Habituado à contrariedade, o homem da ilha sequer estremece com o meu desdém. Está disposto a investir todas as suas economias sentimentais, o tanto que tem poupado por falta de fé. Diz-me que o tempo insular é de horas amplas e que não tem necessidade de as abreviar. Que, sem pressas, acabará por me converter e, quando eu der por mim, terei embarcado, voluntariamente. Era só o que faltava, digo. Era.

14.10.25

Na clausura a que voluntariamente me presto, revivo aquela hora morta da tarde em que, por imperativos anteriores à ordem dos humanos, a natureza obriga ao repouso e as casas cerram as portas para travar a entrada do calor e das moscas. Ouço o rumor de trânsitos longínquos, o vento embala as folhas das árvores com um sussurro premonitório, as abelhas cumprem o laborioso fito da sua existência, ressoa em mim toda a melancolia do mundo, o ar é quente, espesso, volto ao Douro, tenho dez anos e o espírito tão desassossegado, os adultos já recolheram aos quartos para a sesta, exceto o meu pai, está a fumar com os olhos postos nas ossadas da vinha, tenho perguntas para ele mas receio violentar a solenidade da sua introspeção, ainda sobrevivem no ar os aromas da manhã, dos lençóis lavados abertos ao sol, do café de saco, do pão tostado, do tempero do cabrito, da sopa de cebola ao lume, do mosto e da humidade que os lagares expiram desde o ventre da casa. Então, esta felicidade que sinto, breve e comovida, pesa com doçura nos meus olhos, e, diante do altar de Buda, sentada, vertical e sem apoio, mergulho num sono profundo. 

9.10.25

 – Que a tua filha te castigue por todas as consumições que me dás.
As palavras são disparadas à rapariga da papelaria pela boca da própria mãe e assim as ouço eu também, testemunha camuflada no alvoroço do quotidiano. Ao lado delas, Alicita interceta a bala:
– O que são consumições, 'vó?
A sua curiosidade é ainda de garota mas a pose é já elaborada, cheia de pressas na direção da adolescência. Tiques prematuros, unhas tingidas de um azul muito vivo, lábios e olhos com efeitos brilhantes, fantasiosos, uma malinha de mão cor-de-rosa, onde decide guardar o telemóvel para se fazer mais atenta à conversa. Que idade tem? Oito anos a completarem-se daqui a menos de uma semana.
A rapariga da papelaria não se esquiva da crueldade do disparo. Em voz baixa, acusa a mágoa:
– Isso não vai acontecer, porque a minha filha tem uma mãe como eu não tive.
– O que são consumições?  –  em vão, Alicita persiste. 
–  Ai pois tem, tem. Tem uma mãe destrambelhada, que nem a própria vida governa. Como essa não tivestes tu.
Dona Fatinha recolhe o trunfo que a filha lhe deu. Ri com satisfação e sarcasmo, sem vergonha da sua inabilidade para o amor e para o entendimento. Alicita impacienta-se. Começa a desagradar-lhe a indiferença das duas mulheres, aquele jogo teimoso, acossado, cego e surdo, a precariedade emocional a que se vê sujeita por ser criança e só na imaginação achar o ponto de fuga. 
– E o quê que são consumições? 'Vó! Mãããããe! 
A rapariga da papelaria mal ouve a menina, porque a mãe, a cuja autoridade acaba sempre submetida, é um massacre constante a cutucar-lhe as feridas, a sabotar-lhe o raciocínio, a inutilizá-la. Mas, embora habituada –  até por gosto e vocação – a ser exposta, ferida e julgada, não desmorona. 
– Se sou quem sou é por culpa sua. Não foi quem me criou? 
Alicita chega ao limite. Com um gesto brusco, puxa a manga da camisola da mãe e faz subir o tom de voz às alturas da tirania:
– Diz-me o que são consumições! 
É a segunda vez que vejo isto a acontecer: sem dar tempo ao pensamento de moderar a emoção, a rapariga da papelaria volta-se e assenta cinco dedos na face de Alicita. E é também pela segunda vez que a menina, desprotegida, humilhada, decide não poupar no troco, mostrando como é rápida a aprendizagem das lições de desamor: és estúpida, estúpida, estúpida, estúpida.  

6.10.25

Na flor da adolescência, as meninas exemplares tornaram-se o entretenimento favorito da avó e isso não é coisa que incomode as mães, já que assim ficam as despesas e os tempos livres, em boa parte, assegurados. Estão sentadas ambas no degrau da soleira, como bonecas de enfeitar. Têm um rosto fácil, de desenho regular, sem incidentes, o cabelo alinhado pela moda, liso até ao meio das costas, e um olhar distraído do mundo que se assemelha ao dos consumidores de opiáceos e faz desconfiar que talvez toda a matéria seja transparente ou inventada. Desde crianças, parecem-me frutos de um trabalho inacabado, de uma cópula que, por ausência de ânimo e sangue, tivesse ficado aquém do êxtase. Carecem de luz própria, falta-lhes o ímpeto apaixonado da idade, que conduz à insubordinação, à poesia, à experiência das margens e, no meu caso, também a uma série de projetos revolucionários rascunhados na quadrícula apertada dos cadernos de matemática que, graças aos deuses protetores do devaneio, os olhos da minha mãe não vigiavam. 
O propósito da educação que recebem é manter quentinho o coração dos pais e bem posicionada a sua aparência. É uma educação estéril e medrosa, que a cada passo busca encaixar-se nas deficiências do mundo, já que o trabalho de as transformar jamais seria remunerado à altura dos vícios e caprichos com que a avó as alimenta. Se, a par disso, perseverar a dominância genética dos Pereira, nada se produzirá nelas além da vulgaridade e, ainda que cheguem  porque é muito provável que cheguem  aos lugares confortáveis das hierarquias, e que um dia possam exibir na matéria o resultado de suados esforços do espírito, continuarão a sofrer de falta de rasgo, vocabulário raso e imaginação flácida. 
Se for verdade que todos os avanços do mundo se devem à insensatez e à curiosidade, as meninas exemplares cá estarão para cristalizá-lo no inferno que sabemos.