15.10.21

– Parece impossível, sou mãe há quatro anos mas dá-me a impressão que tenho sido mãe a vida inteira.
Diz-me a rapariga da papelaria a propósito do aniversário de Alicita, a celebrar esta noite com a família, um bolo de unicórnios e uma data de lambarices que em dias comuns são proibidas. Compreendo o devaneio. A maternidade apropria-se da memória e nela semeia dúvidas e cava buracos negros. Tudo o que precede a turbulência do instante em que se dá à luz é pertença de uma pessoa de substância fictícia, que já não sabemos ser. Ter um filho até parece um ato de continuidade mas é um salto para um curso paralelo. O tempo antes da maternidade não é passado, é alternativo.
– Não sente o mesmo?
– Nunca pensei nisso.
Minto sempre muito à rapariga da papelaria e a coitada sem culpa nenhuma. Minto com propriedade e segurança, de costas direitas, como uma senhora, apesar de saber que ao mentir humilho a sua sentimentalidade, reduzo o seu pensamento a uma tolice, deixo-a só, à mercê do juízo desgostoso da própria mãe:
– Valha-te Deus, tanto vento nessa cabecinha.
Mas a rapariga da papelaria sobrevive. Está mais do que habituada a tirar o coração fora do peito em público e a escancará-lo sem apoio, eco ou entendimento. Não se lembra, mas antes de Alicita nascer já era assim. Em boa verdade, foi por isso que Alicita nasceu.

13.10.21

Um homem de sorte como, apesar de tudo, o senhor Pereira é, está sempre onde deve estar, ou seja, onde os acasos o favorecem. Pertence-lhe aquela hora exata em que o aguaceiro cessa ou o engarrafamento é desfeito ou o pão está mesmo a sair do forno ou a nota de cinquenta rodopia sem dono na calçada ou as mulheres precisam dos cuidados e atenções de um cavalheiro. Tudo isto são modestas conquistas sobre percalços miúdos, eu sei, mas vão servindo de remendo às desgraças maiores e ninguém nega que muitas vezes nos salvam os dias – senão mesmo a dignidade –  já que são indícios de que deus existe e acordou a segurar-nos a mão ou de que o destino pode estar a ganhar algum senso de justiça.
É, porém, sabido que por cada homem que ganha uma banana, há outro que escorrega na casca. E esta metáfora amanhada à pressa é quase retrato literal do que hoje venho contar. 
Encontro o senhor Pereira aqui onde todas as coisas deste blog acontecem e ele, evoluindo da mera cortesia para o sincero entusiasmo, vai-me perguntando das novidades. Mas basta o SUV da viúva dobrar a esquina e ele sobressalta-se, perde o foco e diz coisas de que nem tem consciência, porque toda a sua atenção está agora posta na viúva e eu não tenho como competir com ela nem faço questão pois em casos destes há mais ganho em assistir ao espetáculo do que em ser protagonista. Aselha como é hábito, insensível às subtilezas da máquina e às ratoeiras do espaço, ela estaciona a um metro do passeio enquanto vibra nas colunas do SUV aquela magnificência da música popular brasileira dos anos oitenta – eu quero ser sua canção, eu quero ser seu tom, me esfregar na sua boca, ser o seu batom, o sabonete que te alisa em baixo do chuveiro – e, verso a verso, eu comprovo que até na banda sonora o senhor Pereira beneficia das manhas do acaso.
Já de mãos nos bolsos, crescem-lhe as costas – e sabemos lá o que mais – acima das possibilidades, franze os lábios a conter as ganas de sorrir, prepara-se todo para saudar a viúva, é como um adolescente em estreia, aflito na gestão dos apetites. A viúva sai do carro e vem já a passar perto, com ar de quem aceita e agradece a lista inteira dos adjetivos que lhe atribuem. Mas no instante exato em que vira a cabeça a dizer como está o senhor? e joga todos os seus trunfos num olhar, qualquer coisa súbita e invisível lhe rasteira o passo. A partir daí, tudo em menos de um ai: falha um pé, a seguir o outro, a viúva tomba para o lado, solta um gritinho e o senhor Pereira lança-se com a determinação de um herói para evitar que o esbardalhanço se complete no passeio imundo, onde qualquer um deixa pegadas, cuspidelas, beatas e dejetos. Dada a urgência do momento, as mãos do senhor Pereira acodem ao corpo dela de todas as maneiras e ângulos possíveis, não há tempo para escolher por onde o amparam e eu garanto, por ter visto, que estiveram em todas as partes onde a sua imaginação já derivou. Como condenar? O pudor até pode ser aliado da civilização mas é empecilho à sobrevivência. E, de resto, o saldo positivo atesta a eficiência do método: certamente o senhor Pereira tocou onde não devia mas a verdade é que os joelhos da viúva não tocaram no chão. 
Quando recupera a pose, ela ajeita os cabelos e desvaloriza a inconveniência: ora essa, muito obrigada, senhor Pereira, mas não foi nada, não era preciso. Já sabemos que não se atrapalha com pouco e, no que às coisas do corpo diz respeito, pende mais para o orgulho do que para a vergonha. Quem se lembra de quando a borda da minissaia ficou presa no cós e ela desceu a rua toda com o vento a possuí-la por trás, um fio de renda na cava das nádegas, a atitude superior de uma rainha? 
O senhor Pereira tem o sorriso todo escancarado. Caiu-lhe a viúva nas mãos – literalmente – sem que o possam culpar e não a quer deixar fugir tão cedo, então segura-a pelos braços e insiste em saber se está bem, se não se magoou, se tem já os pés bem assentes em terra. Quer que a leve a casa, minha senhora? Tomara ele! E muito estranho andaria o mundo se, entre todos os homens que da praceta à rotunda a desejam, a viúva favorecesse justamente o senhor Pereira. Apesar de tudo, a sorte é um bem racionado em conta-gotas e por isso é dito que não se pode abusar dela. Do que por acidente ele provou hoje, o mais certo é não voltar a provar. 

3.10.21


https://assimnaoeescola2021.blogspot.com/


Não é novidade que eu estarei sempre, em qualquer circunstância, do lado dos mais novos. Respeito as rugas e os cabelos brancos - lá chegarei - mas quando imagino, projeto o mundo em que eu gostava de viver, é nos dentes de leite e nas borbulhas que penso pois é deles o caminho que, bem ou mal, se vai fazer. É por eles que alinho a minha consciência política e invisto muito do meu tempo. Paciência para a ladainha dos que por tudo e por nada os censuram ou menosprezam, não tenho ou jamais tive. Cada geração condena sempre a seguinte e nunca tem a humildade de compreender que é totalmente responsável por aquilo em que ela se torna. 
Sei que quem não tem filhos ou já os tem crescidos nunca se importou por aí além com o que se passa nas escolas desde março de 2020. E agora que os dias são de alívio, loucura e ressaca, ou, como dizem os românticos, de libertação, menos ainda. As crianças e os adolescentes ficaram para trás no levantamento de restrições e nas notícias dos jornais, mas que interessa isso a um país onde a visão de futuro tem prazos de quatro anos?

2.10.21

Ontem, os adultos eufóricos, de rosto finalmente escancarado, gratos pela libertação, cheios de esperança, planeando o jantar em grupo e a saída festiva à noite, entregavam no portão da escola, sem qualquer dúvida ou reserva, os seus filhos ainda mascarados, ordeiros e submissos. Foi uma das coisas mais tristes que vi nos últimos tempos, mas também, certamente o mais nítido e simbólico retrato do que somos.

1.10.21

Vade retro o beijo que se dá por dar, o beijo distraído, cerimonioso, etiquetado, afetado, que vai em cantigas de circunstância, o que se dá à troca por rebuçados, o que se presta a desconhecidos e é desbaratado em apresentações, o que se deixa usar sem cuidado e consciência ou se posta em faces que não o pediram nem querem, por demais prolongado e lambuzado. Vade retro o beijo fútil, o oportunista, o comercial, o de oca e despachada simpatia, o que tem tique social – ora um ora dois, consoante o estilo e a proveniência. E vade retro o de judas. 
Abençoado o beijo seletivo, que entre rostos ou bocas transporta sentimento verdadeiro e correspondido, que se dá com intenção e cumplicidade, mesmo que ligeiro e com pressa. Só para esse, felizmente, sobrou lugar depois deste solavanco no mundo.