28.2.23

A viúva, vi-a pela última vez numa noite de setembro, à despedida do verão, no terraço do restaurante italiano, acompanhada de um tipo de blazer e bigode com o charme desusado dos anos oitenta. Espartilhada num vestido curto de napa preta, com o nome da marca em metal dourado em cada uma das alças e uma echarpe vermelho-sangue pontuada de brilhos, a viúva mostra sempre dinheiro a mais e gosto a menos no despudor com que traja. O seu ego tira basto proveito da líbido desassossegada dos homens, do ruído maldizente das mulheres e das águas paradas nos leitos conjugais, mas nada da parte dela nos é devido por causa disso. Pelo contrário. O rasto de vibração felina que deixou, ao atravessar o terraço até à mesa reservada, foi um generoso empréstimo que salvou da bancarrota emocional alguns clientes, cansados já de atualizar o feed nas redes sociais enquanto o vinho não chegava à mesa. 
O tipo de blazer e bigode notou bem o poder da mulher que abria caminho à sua frente pois dele terá sido também uma vítima, ainda que lhe tenha tocado a sorte de poder mexer enquanto aos outros a toda a hora é lembrado que ver é com os olhinhos. Sentaram-se frente a frente, sob a ramada, junto ao estrado onde um rapazito de pouca barba tocava velhas canções italianas em versões frígidas e cheias de tiques modernos. Comeram risoto de qualquer coisa que à distância não vi, conversaram em sussurro, deram-se discretamente as mãos, até ao momento em que, pelos efeitos do vinho ou por artes do tipo de blazer e bigode, a viúva largou a rir, primeiro naquele modo disfarçado que usam as crianças transgressoras, depois em gargalhada livre.
– Cale-se, Artur! Pelo amor de Deus cale-se, que eu não aguento mais...
Então desfez-se ele a rir também. E enquanto ambos riam e quanto mais riam mais vontade de rir ganhavam, parecendo já que cada um ria de o outro tanto se rir, o rapazito de pouca barba cantava, nessa língua que tão bem embala os corações enamorados: io ti amo e chiedo perdonoricordi chi sono, ti amo, ti amo, ti amo, ti amo, ti amo.
Nessa noite tomei a decisão de ir a Itália.

27.2.23

A professora que vive com três gatos pretos e um ror de tralha acumulada fez desabar ontem uma pilha de cestos de rodinhas à porta do supermercado. Não vi como sucedeu, mas ouvi o estrondo e, por estar perto, acudi. Juntas, restaurámos a ordem, colocando novamente os cestos no lugar com grandes esforços para garantir o equilíbrio da torre, porque se eu sou miudinha e tenho pouca amplidão de braços, ela é obesa e mal pode com os dela. No tempo que durou a empreitada, a professora nunca me olhou e, assim que terminámos, deu-me as costas e foi embora com o andar lento, anestesiado, sem obrigada nem adeus, como uma tartaruga gigante que apenas buscasse um lugar para morrer. Antigamente, tomá-la-ia por mal-educada e isso havia de deixar-me febril de indignação, a desfiar mentalmente toda a sorte de palavrões que me aliviassem. Agora, sei que a professora que vive com três gatos pretos e um ror de tralha acumulada nem sequer me notou. A cismar nos seus cansaços quotidianos, na sua velha – e tão injusta – solidão, nas culpas que, não lhe pertencendo, acabaram por cair nas suas costas, ficou cega e surda. As dores, assim remoídas e trituradas, espalham à volta do seu corpo uma poeira fina que lhe desbota a imagem do mundo e a distancia dele. Viu-me como se eu nem ali estivesse e hoje, ao lembrar o episódio dos cestos tombados, talvez se convença de que foi um sonho. Isso dá mais medo do que toda a má educação que possa haver na vizinhança deste blog.

18.2.23

Que falta faz à vizinhança deste blog a imperatriz, toda vestida de coisas desengraçadas para não esmagar a beleza com que nasceu e jamais poderia forjar: caracóis em brasa, olhos de verde tropical, pele de leite morno, dentes muito quadradinhos, pernas quase sempre ao léu, às vezes nos pés uns chinelos de dedo, no colo Joaquim aninhado como no ventre. Mas agora Joaquim ameninou-se, desceu dos braços da mãe, anda firme pelo próprio pé ou na correria trôpega e acidentada dos aprendizes da vida e a imperatriz já só visita a casa dos Pereira uma vez por mês, eles que se façam também à estrada caso as saudades do menino apertem. Então, de há um ano para cá, as ruas envelheceram muito. Se não fosse o novo amor da rapariga da papelaria – até ver, livre de perigos – e os atrevimentos de Alicita – que a avó desespera por calar com receio que a menina cresça igual à mãe  – nesta vizinhança só vingariam a tristeza e a resignação. E até mesmo nestas belas manhãs de sábado, em que ninguém considera a iminência quotidiana da tragédia e por isso saímos de casa portando esse gene castrador a que se chama esperança, que aborta as revoluções e embala os corações da humanidade e amolece os seus punhos dentro dos bolsos, até nestas manhãs a gente cumprimenta-se a dizer vai-se andando, cansada de estranhar o mundo logo ao levantar da cama.

14.2.23

Sempre que meia dúzia de inteligentes se reúne a debater a falta de hábitos de leitura dos portugueses, tenho um sentimento de atração-repulsa  mais repulsa do que atração, admito, mas sucede que por vezes tenho tempos mortos, é tarde para umas coisas, ainda cedo para outras, e estes entretenimentos encaixam aí para me acordar o espírito e olear a indignação, que, como os ossos, emperra com a maturidade. Que insuportáveis se tornaram os evangelizadores! Não porque não seja nobre a sua causa mas porque é ignorante o seu discurso, já que desconhecem os sentimentos e a realidade daqueles sobre quem tanto debatem. Nunca vi que chamassem a explicar-se os que não leem. Autores, editores, professores, curadores, comunicadores, os mesmos de sempre monopolizam os palanques, apresentam os gráficos, as estatísticas, as análises e as soluções: tem de ser desde pequeno, tem de ser todos os dias, tem de ser à noite, tem de ser nas férias, tem de ser nas bibliotecas, têm de ser os pais, têm de ser os professores, tem de ser gratuito, tem de ser assim ou assado, como a bula de um medicamento cheio de ciência mas que nunca passa na garganta.
Ler é um ato trabalhoso, um investimento de tempo e de espírito, de onde a mente se distraí amiúde e por dá cá aquela palha e que, entre os espinhos e enguiços do quotidiano, custa manter. A roda-viva do mundo faz muito barulho, atordoa a mente, mói a alma, tapa as brechas com betão e entulho, respirar é difícil, quanto mais ler. Os que leem nas tardes de invernia, instagramavelmente aninhados no sofá com manta e chá, ou nas esplanadas do estio, com chapéu de abas largas e gin à mão, e supõem que essa seja a disponibilidade e a vocação de todos, o que sabem? E, de resto, quem ajuda? Professores nas escolas chatos e estreitos, críticos de literatura chatos e vendidos, escritores chatos e arrogantes, tertúlias e mesas redondas de feiras com disputas de pavões e filas de bajuladores, listas de livros lidos que a gente tem agora a mania de exibir para efeitos de aprovação social e até de acasalamento? Então às vezes a literatura nem parece um tesouro mas um circo gigante, espalhafatoso e com bilhetes demasiado caros para péssimos lugares. 

1.2.23

À hora do lanche, no pão quente, Gabi tem o corpo cheio de vontades todo debruçado sobre a indiferença do Marco do ginásio. Ele folheia o Notícias, sorri-lhe a espaços para a manter em lume brando e é de uma doçura vaga, ensaiada, a voz com que pergunta, sem a olhar: queres a fatia sem côdea? Fogem ambos à solidão como foge o diabo à cruz, inventando-se como amantes que não são. Ele obtém dela uma adulação fútil, sem tino nem consistência, e, sempre com um olho arredio, fixado na porta da papelaria, paga-lhe em míseras prestações de ternura que ela abocanha como um cão faminto. Embora não sejam sobre Gabi os pensamentos do Marco ao acordar, tampouco os que confia ao travesseiro, sempre vai tirando dela alguma compensação pelo trabalho que dedica ao esplendor do próprio físico. Podia ser qualquer outra, mas por acaso foi a manicura sonsa que se encantou com a sua musculatura e o seu desusado cavalheirismo e o acaso acaba por ser autor dos mais importantes acontecimentos das nossas vidas. Com efeito, Gabi resgatou-o à cómoda posição de sofredor beneficiário da simpatia das velhas, aplicou-lhe feitiços básicos e da noite para o dia lhe atiçou o sangue, fazendo funcionar a seu favor o que à outra parecia estar reservado. Não se amam, mas bastam-se. E porque não?