30.10.24

Aos dezoito anos, a minha avó tripeira deixou-se raptar por um minhoto charmoso, culto e endinheirado, de profundos olhos azuis, sedutor por vocação e amante da boa vida. Como é próprio das paixões fulminantes sem contexto favorável, o desastre não tardou, mas entretanto dos escombros nasceria a minha mãe, herdeira privilegiada daqueles olhos azuis e por causa deles amiúde acusada de malícia, poesia e subversão. A cor exata desses olhos sobrevive no meu irmão mais velho, mas num modo ajuizado, com mais foco do que poesia, mais confiança do que malícia. O meu outro irmão, esse cometeu a ousadia de os adulterar: aproveitou deles a profundidade aquática mas esverdeou-os ao ponto de se tornarem afiados, claros e vibrantes como aventurina, muito difíceis de suportar. E nesta roleta genética, a mim e às minhas irmãs coube-nos o verde paterno, o verde grave e melancólico do Douro, térreo, desarmadilhado, sem o apelo dos abismos e da lonjura, embora uma das minhas irmãs do meio – a mais insubordinada –  tenha de nascença a íris pintalgada de preto e o número dois, minúsculo, escrito com um enigmático rigor. 
Pensei nisto tudo e no quanto se conta da história de uma família através dos olhos, ao ver a imperatriz e Joaquim atravessando a alameda, talvez vindos antecipadamente de Penedono para o fim de semana prolongado. O menino é a mais gloriosa evidência de que a imperatriz vergou todos os Pereira sem precisar de arma ou argumento. Herdou da mãe a pele apetecível, cremosa, e os laivos incendiários do cabelo, mas o que nele, definitivamente, revela que os Pereira não dominam como supõem, são os olhos. Tal qual os da imperatriz, os olhos de Joaquim têm a cor, a luz, o magnetismo, a transparência e a altivez de dois lagos de montanha, em cuja misteriosa profundidade se afundaram, por falta de vigor, os genes da família paterna. 

21.10.24

Ainda nem nove da manhã e já socializam como suricatas. Partilham os feitos domésticos e familiares do fim de semana, a receita de feijoada de marisco, a roupa que engavetaram, cheirosa, sem vincos e a cuja lavagem cuidadosamente acrescentaram águas perfumadas, amaciantes, antiácaros e tudo a que não resistem na passagem pelo supermercado, inteiraram-se das promoções do mês, abusaram das bimbys, foram motoristas dos filhos e ocuparam-nos em todas as horas do dia com atividades coloridas e estridentes para os proteger do tédio, coseram os fatos para o halloween, deram sacos de coisas velhas às empregadas que têm sempre uma prima muito necessitada. A sua maior ousadia foi estragar a dieta devorando um pacote de batatas fritas. A culpa mais insuportável foi a de o terem feito às escondidas dos filhos. 
E tu, o teu fim de semana? perguntam-me. Como a adolescência apanhada no delito, levanto a cabeça, desafiadora, embora no fundo me envergonhe do meu desinteresse em ser também útil, instrumental e eficiente. Eu? Então, neste fim de semana, Bárbara pediu-me que lhe tomasse conta da casa por uns dias. Juntamente com a casa, confiou-me a guarda de um amigo toxicodependente em abstinência, cheio de fantasmas e inseguranças. Não gosto da Bárbara, sinto por ela um asco visceral, anterior às nossas vidas, somos água e azeite. Custou-me aceitar o pedido, mas compadeci-me do amigo, ainda que me falte essa extensão do instinto maternal que dá a algumas mulheres o prazer de tomar conta de tudo o que bule e servir adultos como bebés. A minha amiga Rita partiu numa viagem de seis meses pela América do Sul, veio despedir-se e combinámos encontrar-nos na fronteira do Uruguai, no dia que separa os nossos aniversários. Qual fronteira? perguntei. A gente encontra-se de qualquer modo, disse ela. Entretanto, dei à luz uma filha com uma coroa na cabeça. Sofri muito ao expulsá-la, rasgaram-me por dentro os rendilhados áureos e as pedras preciosas, porém, quando a tomei no colo, chorei de felicidade, sempre quis ser mãe de uma mulher. Demoli, com as próprias mãos, as paredes da minha casa que estão viradas a nascente para ter mais panorama, se chover logo se vê. 
E tudo isto enquanto eu dormia. Imaginem quando acordada.

17.10.24

O código de conduta da escola assemelha-se cada vez mais ao regulamento de um estabelecimento prisional. Quando os mestres desaprendem a maestria e rascunham assim os princípios do futuro, todos os inocentes de hoje se tornarão, inevitavelmente, culpados amanhã. 

16.10.24

De um coração de mãe é hábito, por lirismo ou por engano, esperar-se paciência, coragem, tenacidade e abnegação em quantidades infinitas. Mas quem é que vai ao cúmulo de esperar sensatez? A mulher do senhor Pereira, por exemplo: no que por defeito pecou com as filhas, por excesso pecou com o caçula. Tem por ele uma paixão alucinada, que deforma, desculpa e ampara exageradamente. Assim criou um homem sem graça, rasgo ou vocação, satisfeito com a concavidade do sofá e a comida requentada, inapto para as coisas fundamentais da vida, desde a autonomia doméstica até ao entendimento amoroso.
O senhor Pereira adianta-se na salvaguarda da própria inocência:
– A minha mulher é que estragou este rapaz. 
Em boa verdade, que culpa havia de ter ele se, enquanto pai, se especializou na imposição de regras e razões, deixando à mãe o cuidado com as coisas quotidianas e menores, que é onde, pela calada, se semeiam os maus hábitos? Embora arregalados, os olhos da autoridade são amiúde desatentos. Obcecados com a manutenção da ordem, regulam a aparência, vigiam a superfície e distraem-se dos perigos que fermentam na intimidade. 
– Foi sempre um rapaz muito sensível – insiste a mulher, um primor na arte de ignorar estocadas. Nem vacilou no dia em que atendeu o telemóvel do marido e do outro lado uma voz de fêmea, sim, amor, e havia de tombar agora por tão frívola acusação? Encobre as deficiências de caráter do filho louvando-lhe a sensibilidade, mas o recurso é fraco e equivocado. Sensível é quem sente profundamente a dor dos outros, não quem chafurda nas próprias dores. E, não bastasse a distorção, atribui-lhe também o estatuto de vítima, lembrando, mais uma vez, como a imperatriz burlou o coração dele fazendo uso de feitiços e talentos que enfim, é melhor calar-me para não dizer o que não fica bem na minha boca. Mas um dia ele vai encontrar a mulher certa. 
– Se Deus quiser. – remata o senhor Pereira.
– Sim, claro, se Deus quiser.
E ei-los outra vez harmonizados, se não nos princípios e nos processos, ao menos nas soluções. Deus que desate os nós que a arrogância aperta até à cegueira.

14.10.24

Dá-me um instante que eu possa nunca mais lembrar. Tenho o coração atulhado de coisas inesquecíveis, o passado é tão feliz que o presente se condena a perder sempre. Dá-me um instante que pouco importe mas, espera, não tão pouco assim pois então eu acabaria a lembrá-lo pela inutilidade. Um instante que seja transitório e estéril como um vento breve, sem causa ou consequência, que não lance sementes nem deixe destroços, que seja tudo e o seu oposto, que se esgote, se anule e enterre, como um empréstimo que nos salvou a vida mas que, depois de pago, é como se nunca tivesse existido. 

8.10.24

Deixe-me ser triste se eu quiser ser triste, mãe. 
Acontece a certas pessoas uma espécie de vocação para a infelicidade e se isso não foi ainda validado pelas ciências de laboratório, há de ser pelo menos evidente a quem estuda pelos olhos dos outros, que é onde dizem estar resumida toda a matéria da vida sentimental. Só assim se explica que a realização de um sonho nem sempre remedeie a angústia precedente. Veja-se a rapariga da papelaria. Na vizinhança deste blog, foi sempre a coitadinha, a desgraçada, a desiludida, a preterida, a injustiçada. Durante anos, a má sorte que teve aos amores inspirou os lamentos das velhas e adoeceu os nervos da mãe. Foi também pela sua melancolia tão cândida, crédula e desarmada, que se embeiçou o Marco do ginásio. Nós todos fomos testemunhas enternecidas do seu sonho cor-de-rosa, que nem estocadas, maus prenúncios ou piadas de mau gosto abalaram. E, aparentemente, a rapariga da papelaria triunfou: de abandonada passou a ser aquela por quem abandonaram outra, mostrando-se assim como o destino opera vinganças e ajustes de contas mesmo à revelia dos seus protagonistas e enviando a fatura aos inocentes. Mas então, se é finalmente seu, inteiramente seu, o homem maduro, por que motivo anda ela outra vez de feição murcha, olhos tristonhos, boquinha a transbordar suspiros e tontices? 
A mãe atira-lhe à cara: nunca estás satisfeita com nada, nascestes pra chorar o que não tens. Pede-lhe que se alegre por estarem agora, finalmente, as coisas no lugar onde sonhou. Que seja razoávelMas o grande talento da rapariga da papelaria é ludibriar a razão. É certo que finalmente lhe coube um amor feliz, mas, pensando bem, os amores felizes – que a certa altura se conformam à desinteressante condição de amores bem geridos – não têm história nem fazem cantiga. É o elo precário de um amor difícil, improvável ou trágico que edifica. E, de resto, numa papelaria onde pouco mais se faz além de raspar lotarias, carregar títulos de transporte e dar um jeitinho ao quotidiano com dois dedos de conversa, é urgente um ato de sacrifício. Alguém tem de ousar uma demonstração de sangue vivo e fazer um manguito aos hábitos comodistas, maçadores e vulgares da felicidade. 

1.10.24

Sento-me diante do olhar compassivo de Buda disposta a imitar a sua dignidade, faço as orações, deponho os desejos e as armas. Pouco a pouco, entrego também as culpas, as lembranças, os fantasmas, os futuros possíveis, as palavras que devia calar e ainda agora proferi mais as que, por ter engolido, me envenenaram. Ao fim de algumas horas, começo a esquecer-me do sabor do chocolate, da água quente na pele, do cheiro a mosto e livros velhos, da textura e do vagar da tua língua, da atração pelo espelho, do gozo da vitória sobre os adversários. O meu corpo baloiça suavemente, o coração bate lento nas pontas dos dedos, cheira a canela e a sândalo, as velas cintilam no altar, há bailarico e foguetes num lugarejo vizinho mas já só ouço os rumores do jejum e o ranger das madeiras antigas. Estou quase lá, onde nenhuma guerra me convoca, nenhuma causa me seduz, o rosto do inimigo é branco, todos os laços se desfazem, não sou mais filha, irmã, mãe e amante, a minha palavra não vale um cêntimo, estou livre de servir e ser servida, quase lá. Quase. No fundo da sala, bate com estrondo uma porta por desleixo, depois uma risadinha adolescente e várias outras por contágio. Sacudido, o meu coração retoma o pulso original, o sangue levanta fervura e recupero toda a minha humanidade, as minhas raivas, os meus delírios, as minhas ganas, a minha visão turva, apaixonada, do real. Que alívio. 
Sempre quase lá, mas nunca mais do que quase.