Mais logo cantam-se os parabéns pelo sexto aniversário de Alicita. À euforia da menina, que vive no resguardo das ilusões da infância, opõe-se o amargor da avó, triste de ver que a descendência não realizará os sonhos a que depois da viuvez se agarrou com unhas, dentes e orações.
– Esta vai ser pior c'á mãe, já nasceu com o fogo no rabo.
Tenho para mim que não é intenção fazer piada com a desgraça que envergonhou Portugal no dia exato em que a neta veio ao mundo. E às velhas também passa despercebida a coincidência da metáfora. Só o Marco do ginásio, que faz revista às manchetes antes de decidir o que leva:
– Ó dona Fátima, esse trocadilho era escusado. Morreu tanta gente...
Parece outro, este rapaz. Longe vai o tempo em que se abeirava com as cautelas de um gatinho doméstico, as velhas derretiam-se e por isso empurravam-no para que caísse nas boas graças da rapariga da papelaria. Bom dia, boa tarde, se faz favor, obrigado, gosto em vê-la, continuação, tudo à hora certa de ser dito, tão educadinho e trabalhador, sem vícios nem distrações. À época, jamais ele contestaria as palavras ouvidas fosse a quem fosse e muito menos desafiaria os humores difíceis da mãe da rapariga da papelaria, que havia de ser sua sogra caso o destino urdisse com alguma inteligência. Mal ou bem, Gabi espevitou-o. À custa dela, da sua entrega abnegada, da sua devoção, do hábito de se agarrar a ele e o lambuzar em público até lhe tirar de uma vez por todas o pudor, Marco tem agora um ego mais à medida dos ombros e, por consequência, porta-se com a desenvoltura que tem nos bíceps.
Porém, à mãe da rapariga da papelaria pouco importa o que aconteceu há seis anos. Mortos? que deus os tenha, nada a fazer, e os vivos com ou sem ajuda hão de ter já ultrapassado as perdas. Importa-lhe a sua desgraça particular, a filha convertida em amásia, a netinha bastarda e insolente. É verdade que esteve quase, quase a perdoá-las. Houve alturas em que se ligaram as três profunda e amorosamente, parecia nascer ali uma cumplicidade cuja argamassa homem nenhum voltaria a corroer. Mas a reincidência da leviandade e os espetáculos constantemente proporcionados à vizinhança da papelaria reacenderam os rancores no seu coração.
– Dona Fatinha, a gente não pode andar sempre às turras com aqueles a quem tem amor. E deixe lá o que os outros pensam, quem está de fora não racha lenha.
– Eu amor tenho-lhes, dona Rute. Mas elas, se mo tivessem na mesma medida, não me envergonhavam assim.
Com ou sem vergonhas, fecha-se hoje a papelaria mais cedo para comemorar. Alicita terá um bolo de unicórnios, a mãe não poupará nos mimos, nos enfeites e nos presentes. E até a avó, quando se achar entre quatro paredes e despir o traje da sua altivez dorida, acabará a cobrir a menina de beijos, dar-lhe-á uma nota para o mealheiro e uma das suas joias, para ela usar um dia, quando for mulherzinha e tiver juízo.