10.7.25

Ao balcão do pão quente, a professora que vive com três gatos pretos e um ror de tralha acumulada vaza a dor que ontem a abalroou com a fúria de um tornado e da qual ainda não se refez: propuseram ao rapaz um lugar no Dubai, regalias e caprichos à disposição, o sonho de uma vida, e ele, sem pedir conselho ou partilhar preocupações, aceitou. Antes do fim do verão, trocará Barcelona pela cidade do futuro.
Há filhos tão empenhados na destruição das mães! Começam desde logo no ventre, silenciosos e diminutos como parasitas, consomem-lhes o corpo, a lucidez, a memória, depois semeiam no espírito delas medos e pressentimentos, avariam-lhes os nervos em noites insones e guerras quotidianas. Pedem-lhes de empréstimo a existência, um dia — quem sabe? — hão de pagar em realizações, títulos, medalhas, brilharetes entre amigos e família e o mais que venha de consolo e recompensa. Mas mal lhes largam as saias, renegam tudo e põem-se a milhas.
—  Meta-se num avião e vá lá de visita, que hoje em dia a gente pomo-nos em todo o lado num instante. É ou não é, princesa?
Diante dos olhos da professora, a quem os comprimidos extinguiram há muito a centelha da curiosidade, a empregada do pão quente pousa uma bola de Berlim ainda morna. 
— A gente põe-se ou nós pomo-nos, tens de escolher —  corrige com a boca já cheia de uma dentada urgente, excessos de creme nos cantos, um pingo atrevido a afundar-se nos refegos da papada. Faz-lhe jeito a desconversa, poupa-a de admitir que o corpo assim vagaroso, pesado, incompetente para a vida, distorce as métricas da distância e, nessa geografia plástica, o Dubai fica para lá de todas as vontades. Haviam de dizer dela o quê? Que não presta como mãe, que tem um coração árido ou, pior, que a ausência do rapaz é a retribuição pelo desleixo amoroso em que foi criado. 
Mas a empregada do pão quente insiste:
— A sério, vá. E traga chocolates, princesa, traga chocolates.
As palavras têm na professora o efeito de um estimulante. O queixo levanta-se, os olhos acendem-se e a resposta sai pronta, rigorosa, quase automática:
— Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates. 
— Não percebi, princesa. 
Mas porque, a esta altura, a professora ri com um inesperado prazer, a empregada larga também a rir, embarcando na graça às cegas, por puro contágio. Vai crescendo em ambas o vigor do riso, uma a rir de uma coisa, outra de outra e, às páginas tantas, ambas a rir sem saber do quê, a professora em convulsões silenciosas, mal aguentando no corpo o ímpeto daquela espécie de felicidade, a empregada a atrapalhar-se toda na contagem dos moletes e uma fila de gente em suspenso, a prolongar-se até à esplanada. 
— Juro, princesa, juro que não percebi nadinha de nada...