27.9.24

Notemos essas grupetas que gostam de elaborar, online e offline, acerca do flagelo que é a falta de hábitos de leitura. Uns do meio literário e educativo, outros somente opinadores a quem o ócio desencaminha mais do que o mundo precisa, mas todos certamente superiores, pois dominam a receita para a elevação intelectual de um povo. Supõem-se cultos porque leem muitos livros, ignorando que a cultura não é um ato de consumo mas antes – e sobretudo – de entendimento e transformação. Notemos como são sobranceiros e autoritários, logo aí deixando em evidência que é parco e seco o fruto que dá tudo o quanto em si dizem cultivar. Limitados ao convívio e à comunicação uns com os outros, ora em corredores de academia ora em eventos de acesso condicionado, que margem lhes sobra para evoluir em visão e raciocínio? Tomam pela verdade o que supõem mas supõem generalizando, porque as generalizações são a tara de quem vive fechado em gabinetes, agarrado a manuais, trocando impressões com os pares. Esses, quando vêm defender, sem margem à dúvida, que o remédio para a gente gostar de ler é mandar ler – aplicando com rigor essa coisa desapaixonada a que se chama o hábito da leitura – não vos lembram aqueles pais provincianos muito certos de que impor ao filho quase infante a frequência de bordéis era o quanto bastava para os educar na paixão pelo sexo oposto?

24.9.24

 – Gosto dele como sei lá o quê. Acho que morria se ele me deixasse agora... 
É Gabi. Os olhos encharcadinhos de emoção e deslumbre, são quase dois anos de namoro para celebrar com o Marco do ginásio, nem sabe ela como chegaram até aqui sem percalços ou desavenças (mas sei eu). Comove-se também a cabeleireira, uma revoada de penas e lembranças murcha-lhe a expressão, ressoa nela todo o medo que atormenta a jovem. Bate na madeira, filha, bate na madeira e dá cá um abracinho, cúmplices na fraqueza, como nunca as vi no trabalho. 
Assentam as versões mais perigosas do romantismo nesta ideia de que o outro nos salvará. Em tempos que já lá vão, salvar-nos-ia de dragões, malfeitores, ruína financeira, má fama e até guerras. Hoje, salva-nos de levarmos sozinhos às costas o absurdo de existir. Ser romântico é uma enorme irresponsabilidade, quando não uma vergonhosa preguiça. 

17.9.24

Porém, não apareceste. Apareceu antes o meu pai, o que é natural, já que estamos às portas do outono, seria o tempo de irmos a Castro Daire comer arroz de feijão com salpicão, o tempo de ele interpretar a ondulação animal das minhas ancas e os meus excessos de apetite, tu não estarás grávida? e eu, tão leviana, menosprezando o quanto pode essa raríssima aliança entre ciência e intuição que nele era quotidiana, original e generosa: que disparate, nem pensar. Apareceu antes o meu pai, dizia eu. E fomos juntos de automóvel, ele conduziu com a serenidade real, era mesmo ele e não outro como acontece em certos sonhos que reconfiguram o mundo sensível, era exatamente sua a face, o olhar sóbrio, a constância, a lucidez, o longo silêncio que não usava para se ausentar mas para se fazer mais atento – quem fala muito distrai-se do fundamental. Súbito, parou. Desligou o motor, notou os próprios pés, disse sei qual é a embraiagem, o travão e o acelerador, mas não consigo usá-los, estou a ter um enfarte. Trocámos de lugar, sentei-me ao volante e antes de rodar à chave despertei, obviamente, sem qualquer vestígio dele, nem rosto, nem cheiro, nem gesto, nem sopro, embora me tenha levantado da cama com ele sobrevivo, vitorioso, em cada uma das minhas células.

13.9.24

Deito-me esta noite mais cedo na esperança de te encontrar num dos meus sonhos. Mas, olha, não é propriamente o sonho que eu quero, pois desse não guardarei depois mais do que lembrança. Quero os primeiros instantes do despertar, aquela vaga consciência de existir, a realidade dúbia e tão porosa, porque é aí que o meu cérebro crê na possibilidade de ali estares e ao corpo – que maravilha! – não resta senão concordar e obedecer. 

11.9.24

Os homens na praceta já não ficam extasiados à passagem da viúva e o que antes comentavam por desejo, comentam agora com despeito. Mas que mal lhes fez ela? Nenhum, além de andar na companhia do homem de bigode com o charme desusado dos anos oitenta e autorizar que a sua mão erre no dorso dela, devagar desde o sopé das nádegas até à secreta concavidade da nuca e de novo abaixo e outra vez acima. Não é um gesto particularmente original, mas nem todos têm ciência e tato para uma primorosa execução, e assim, à vista dos homens na praceta, é um crime. Ao deixar-se amar em público, a viúva matou a imaginação deles e a imaginação – sabe qualquer um – é o mais poderoso entre todos os afrodisíacos. 

9.9.24

À porta da papelaria, Alicita sacode o marasmo domingueiro da vizinhança com muito alarido e uma torrente de lágrimas. Ouço dizer que, às primeiras tentativas de rodar na bicicleta sem apoios, a menina deu um trambolhão espetacular e das mazelas resultantes constam um braço escoriado, um joelho aberto e duas mãozitas num estado de dar pena. A avó acorre com muita aflição e um frasquinho de desinfetante, mas a mãe, que é mãe e por isso se basta, cai de joelhos e lambe-lhe todas as fontes de sangue vivo como um animal. De passagem, admiro a cena e comovo-me. Que fáceis são as dores dos filhos pequenos! Sobre elas temos sabedoria, autoridade e remédio pronto. Difícil é a hora de acudir às feridas dos filhos crescidos, cujos corpos ultrapassam a medida do nosso regaço e, por terem perdido a inocência, não acham mais consolo em cantigas rimadas, falsas promessas ou medalhas de coragem.

4.9.24

Gosto de ouvir as estagiárias na pausa para o café. Não estranho o ritmo frenético nem o facto de se darem muito ao relato e nada à reflexão. São inocentes disso. Vieram ao mundo nesta época em que opinar já não é atributo de consciência, dever de cidadania ou estímulo entre bons companheiros, mas um tacho remunerado ao minuto ou ao caráter. Ensinaram-lhes que o que basta é contar, mas que difícil se tornou fazê-lo sem mostrar! Se peço que me expliquem, espera, e recorrem a uma fotografia ou a um vídeo, porque as palavras rareiam e dão trabalho. Começam todas as frases por imagina, embora depois, que pena, haja pouco para imaginar. Imagina é o novo é assim, uma muleta introdutória de significância nenhuma, uma bagatela sintática, um adorno para preguiçosos. Vamos simplificar, dizem de tudo – e simplificando extinguem maravilhas, enigmas, tensão, dúvida. Com elas, o mundo ganhou competência e agilidade, mas perdeu mistério e matizes.
Apesar de tudo isto, como eu invejo a sua insensata urgência no porvir, os absurdos ideológicos formulados a partir de indignaçõezinhas miúdas, benignas e passageiras, o olhar bovino sobre as profundezas da realidade. Invejo o quanto sabem de mundos e linguagens que desconheço, invejo o sonho cuja impossibilidade ignoram e por isso perseguem, invejo a magnífica, tentadora visão da curva em que ainda irão despistar-se, as primeiras vezes de tudo o que têm por fazer. Invejo, ainda e sobretudo – pobre de mim –, que com uma carteira nova ou um par de sapatos tão bem remedeiem todas as dores da alma.

2.9.24

Esta noite, Rosarinho pariu quatro filhos de uma assentada, com a ajuda dos pais, da avó, do marido e dos cunhados, do irmão caçula, das primas de Viseu e de mais uma data de familiares madeirenses a quem só se costuma ver a fronha em casamentos e funerais. Talvez eu já tenha visto isso em algum filme: uma mulher a dar à luz e uma aldeia inteira à sua volta. Ofereciam uns as mãos para que ela as mordesse nos picos de dor, outros contribuíam marcando o compasso da respiração e muitos apenas olhavam pelo simples facto de ser necessário assistir ao milagre para fixar na retina a autoridade e o pulso firme da natureza, que joga com as forças humanas até às bordas da insânia e, quantas vezes, para lá delas. Graças a uma porta entreaberta por descuido, também vi tudo. Rosarinho com o corpo escancarado, o sexo rasgado e a vida por um fio, a revirar os olhos, a expulsar os filhos, de seios completamente descobertos, já a postos para servir. Não avancei para ajudar. Assisti àquela hora tortuosa a lembrar-me de como ela conseguiu realizar o único sonho de que se alimentou toda a sua adolescência: casar com um dos melhores partidos do Norte. Reconheçamos o mérito. Era engraçada, loirinha, com dois sobrenomes bastante apresentáveis aos quais fez questão de acrescentar uma criteriosa seleção dos do marido e, embora tivesse frequentado os colégios que lideram os rankings, chegou à idade adulta a julgar que se fecha um x-ato empurrando a lâmina com o dedo, sem saber quantos centímetros tem um metro e na mais absoluta ignorância sobre o que se obtém ao somar os quadrados dos catetos. Mentirosa e má profissional, salvou o mundo quando decidiu dedicar-se apenas ao ponto de cruz e a workshops de confeção de macarons. Dizia que filhos, só havia de os ter por cesariana para não escangalhar o pipi, e que quem amamenta são as vacas. Vê-la ali tão exposta, na sua condição primordial, contorcida, subjugada, foi uma surpresa. Perto das quatro da manhã, os urros dela acordaram-me. Apalpei o breu, acendi o candeeiro, um alívio ver o quarto silencioso, limpo e só para mim. O descaramento com que esta gente me entra nos sonhos ao cabo de mais de um par de décadas!