De um coração de mãe é hábito, por lirismo ou por engano, esperar-se paciência, coragem, tenacidade e abnegação em quantidades infinitas. Mas quem é que vai ao cúmulo de esperar sensatez? A mulher do senhor Pereira, por exemplo: no que por defeito pecou com as filhas, por excesso pecou com o caçula. Tem por ele uma paixão alucinada, que deforma, desculpa e ampara exageradamente. Assim criou um homem sem graça, rasgo ou vocação, satisfeito com a concavidade do sofá e a comida requentada, inapto para as coisas fundamentais da vida, desde a autonomia doméstica até ao entendimento amoroso.
O senhor Pereira adianta-se na salvaguarda da própria inocência:
– A minha mulher é que estragou este rapaz.
Em boa verdade, que culpa havia de ter ele se, enquanto pai, se especializou na imposição de regras e razões, deixando à mãe o cuidado com as coisas quotidianas e menores, que é onde, pela calada, se semeiam os maus hábitos? Embora arregalados, os olhos da autoridade são amiúde desatentos. Obcecados com a manutenção da ordem, regulam a aparência, vigiam a superfície e distraem-se dos perigos que fermentam na intimidade.
– Foi sempre um rapaz muito sensível – insiste a mulher, um primor na arte de ignorar estocadas. Nem vacilou no dia em que atendeu o telemóvel do marido e do outro lado uma voz de fêmea, sim, amor, e havia de tombar agora por tão frívola acusação? Encobre as deficiências de caráter do filho louvando-lhe a sensibilidade, mas o recurso é fraco e equivocado. Sensível é quem sente profundamente a dor dos outros, não quem chafurda nas próprias dores. E, não bastasse a distorção, atribui-lhe também o estatuto de vítima, lembrando, mais uma vez, como a imperatriz burlou o coração dele fazendo uso de feitiços e talentos que enfim, é melhor calar-me para não dizer o que não fica bem na minha boca. Mas um dia ele vai encontrar a mulher certa.
– Se Deus quiser. – remata o senhor Pereira.
– Sim, claro, se Deus quiser.
E ei-los outra vez harmonizados, se não nos princípios e nos processos, ao menos nas soluções. Deus que desate os nós que a arrogância aperta até à cegueira.