Não fosse criatura minha, o rapaz voador havia de ser o meu maior amigo. Em quase tudo as nossas vidas se opõem – ele é amante de lonjura e precipícios, viciado em espanto, novidade e movimento, a mim agrada-me a terra firme, estar viva já tem sido ousadia bastante e se às vezes vou mais longe do que creio ser razoável é porque me leva ele pela mão. Não fosse criatura minha, eu procurá-lo-ia sempre que a coragem me faltasse, socorrer-me-ia da sua palavra lúcida e profunda, aprenderia com ele a interpretar pessoas, a enxotar fantasmas, a encantar crianças e animais, tomaria a amplidão do seu peito para repouso de todos os meus cansaços.
E o menino de cabelos de oiro velho e olhos de mar de inverno? Ah, por esse eu havia de apaixonar-me perdidamente, escreveria versos anónimos nas páginas do seu caderno, beberia, sôfrega e de queixo caído, cada uma das suas teses e considerações, encobrindo a minha ignorância para não merecer o seu desdém. Embora sabendo que manobra o verbo com intenção de seduzir, ainda assim me deixaria levar. Usaria brilhos e dourados, pintaria os lábios, seria feminina e lunar. Investiria toda a imaginação no momento em que também a mim ele pedisse o número de telefone no cimo da Torre Eiffel, como o vi fazer a outra.
Porém, não me calhou ser, na vida deles, assim suave e passageira. Calhou-me ser mãe e não outra coisa qualquer. Calhou-me o útero, a semente, a casa, o amor primordial, o posto de vigia, o dever do mestre, a dor e o poder da expulsão.