1.10.24

Sento-me diante do olhar compassivo de Buda disposta a imitar a sua dignidade, faço as orações, deponho os desejos e as armas. Pouco a pouco, entrego também as culpas, as lembranças, os fantasmas, os futuros possíveis, as palavras que devia calar e ainda agora proferi mais as que, por ter engolido, me envenenaram. Ao fim de algumas horas, começo a esquecer-me do sabor do chocolate, da água quente na pele, do cheiro a mosto e livros velhos, da textura e do vagar da tua língua, da atração pelo espelho, do gozo da vitória sobre os adversários. O meu corpo baloiça suavemente, o coração bate lento nas pontas dos dedos, cheira a canela e a sândalo, as velas cintilam no altar, há bailarico e foguetes num lugarejo vizinho mas já só ouço os rumores do jejum e o ranger das madeiras antigas. Estou quase lá, onde nenhuma guerra me convoca, nenhuma causa me seduz, o rosto do inimigo é branco, todos os laços se desfazem, não sou mais filha, irmã, mãe e amante, a minha palavra não vale um cêntimo, estou livre de servir e ser servida, quase lá. Quase. No fundo da sala, bate com estrondo uma porta por desleixo, depois uma risadinha adolescente e várias outras por contágio. Sacudido, o meu coração retoma o pulso original, o sangue levanta fervura e recupero toda a minha humanidade, as minhas raivas, os meus delírios, as minhas ganas, a minha visão turva, apaixonada, do real. Que alívio. 
Sempre quase lá, mas nunca mais do que quase.