E a menina, diz o senhor Pereira, caminhando ao meu encontro com o riso garoto de quem se dispõe a pedinchar favores, a menina é que me podia dar uma ajudinha aqui com umas rimas novas. Até ao fim do mês há concurso de quadras populares no jornal diário e se não for pelos prémios, que até são generosos, que seja pela distração. Disseram-me que a menina tem queda para poeta. Valha-me Deus, senhor Pereira, a leviandade com que se atribuem aos outros culpas e cargas tão pesadas. É da sua cabeça ou da má-língua da vizinhança a ideia de que eu algum dia pudesse ser poeta? Os poetas fumam ou bebem muito, sofrem dos nervos e de infâncias doridas, atraem amores malditos, têm raiva à própria sombra. Moram no limiar da loucura, está certo que todos moramos, mas a eles o mundo perdoa mau génio, narcisismo, sujidade, caprichos, cabelos revoltos e mutilações, como aos filhos prediletos. Então eu, de pés na terra, casa arrumada, cadastro limpo, mente oleada, pontual no compromisso, rigorosa no verbo, com as emoções dobradas sob o jugo de uma mente disciplinada, nem uma gota de romantismo me tempera o sangue, sequer subversiva sou, tenho fantasmas mas são amigáveis e quando me visitam encontram-me de porta fechada e sono pesado, então eu, senhor Pereira, tão ordenada, silábica e suave, a ser alguma coisa serei o verso, jamais, jamais, jamais aquela que verseja.