Olha a falta que me fazes nestes dias.
É outubro, o vento devia estar a despir os braços das árvores, a estender nas calçadas os tapetes românticos do outono, a espalhar aromas de mosto e lenha queimada. Mas o tempo é estagnado, tenho a impressão de não avançarem as estações, os dias, as horas. Hoje é igual a ontem, as notícias repetem-se, os ladrões voltam ao local do crime, a terra treme com assiduidade, a fome grassa nas latitudes de sempre, o medo agita os leitos à volta do mundo, os injustiçados rebelam-se contra os abusos e a ignorância em que as civilizações reincidem. Ou poderá ser de outra forma e eu, adormecida, não reparo. O trânsito desta cidade adoece-me. Chego a casa gasta do vaivém, como um pano de limpar, mas continuo a ir e a vir, dou as minhas horas, as minhas melhores horas, as horas de inspiração, energia e clarividência, dou-as à troca de pão para a boca, esquecendo como é magnífico o poente porque quando ele acontece estou morta dentro de um carro, numa fila cujo fim não vejo, rumo a um destino que, afinal, é só pernoita.
A falta que me fazes é a falta de consciência. Preciso que me contes as tuas histórias para eu despertar, não deixes que me embalem, ajuda-me a manter os olhos abertos, puxa-me para a margem e mostra-me a realidade, de fora e de longe, quero ser lúcida até ao dia da minha morte. Às vezes cruzo a perna, pouso o cotovelo na mesa, a cabeça na palma da mão, fico a ver o que não está à vista, qualquer coisa de que me lembre, outra que só esboce, várias que resultem de cisma ou alucinação, talvez quem olha julgue que estudo miudezas – os veios do soalho, a rosácea de um puxador, uma franja do tapete. E exatamente nessa forma de abandono, na curva preguiçosa das costas, no ângulo envelhecido dessa introspeção, que não quero importunada nem pela voz dos meus filhos, reconheço a tua herança.