– Que a tua filha te castigue por todas as consumições que me dás.
As palavras são disparadas à rapariga da papelaria pela boca da própria mãe e assim as ouço eu também, testemunha camuflada no alvoroço do quotidiano. Ao lado delas, Alicita interceta a bala:
– O que são consumições, 'vó?
A sua curiosidade é ainda de garota mas a pose é já elaborada, cheia de pressas na direção da adolescência. Tiques prematuros, unhas tingidas de um azul muito vivo, lábios e olhos com efeitos brilhantes, fantasiosos, uma malinha de mão cor-de-rosa, onde decide guardar o telemóvel para se fazer mais atenta à conversa. Que idade tem? Oito anos a completarem-se daqui a menos de uma semana.
A rapariga da papelaria não se esquiva da crueldade do disparo. Em voz baixa, acusa a mágoa:
– Isso não vai acontecer, porque a minha filha tem uma mãe como eu não tive.
– O que são consumições? – em vão, Alicita persiste.
– Ai pois tem, tem. Tem uma mãe destrambelhada, que nem a própria vida governa. Como essa não tivestes tu.
Dona Fatinha recolhe o trunfo que a filha lhe deu. Ri com satisfação e sarcasmo, sem vergonha da sua inabilidade para o amor e para o entendimento. Alicita impacienta-se. Começa a desagradar-lhe a indiferença das duas mulheres, aquele jogo teimoso, acossado, cego e surdo, a precariedade emocional a que se vê sujeita por ser criança e só na imaginação achar o ponto de fuga.
– E o quê que são consumições? 'Vó! Mãããããe!
A rapariga da papelaria mal ouve a menina, porque a mãe, a cuja autoridade acaba sempre submetida, é um massacre constante a cutucar-lhe as feridas, a sabotar-lhe o raciocínio, a inutilizá-la. Mas, embora habituada – até por gosto e vocação – a ser exposta, ferida e julgada, não desmorona.
– Se sou quem sou é por culpa sua. Não foi quem me criou?
Alicita chega ao limite. Com um gesto brusco, puxa a manga da camisola da mãe e faz subir o tom de voz às alturas da tirania:
– Diz-me o que são consumições!
É a segunda vez que vejo isto a acontecer: sem dar tempo ao pensamento de moderar a emoção, a rapariga da papelaria volta-se e assenta cinco dedos na face de Alicita. E é também pela segunda vez que a menina, desprotegida, humilhada, decide não poupar no troco, mostrando como é rápida a aprendizagem das lições de desamor: és estúpida, estúpida, estúpida, estúpida.