30.1.23

Se paro, penso, diz a cabeleireira quando comento a genica com que a vejo esfregar os azulejos da entrada do salão antes das oito e meia. Será engano meu, que o frio, embora aguce o espírito, às vezes entorpece os sentidos, mas ia jurar que os seus olhos desesperam para se manterem à tona de uma devastadora onda de água e sal. Alguma coisa lhe dói e eu concordo que a dor é como as crianças buliçosas, há que lhes dar que fazer para que não se ponham a mexer onde não devem. Para todas as dores se encontra uma ocupação que sirva de terapia e com urgência a procuramos por sabermos já de cor que o silêncio e a quietude engrossam a voz com que ela fala dentro das nossas cabeças. Escutá-la é tortura e dá medo imaginar que o tempo não garanta a sua diluição. Dar aos braços ou às pernas, seja a desencardir azulejos ou a pedalar por trilhos e matagais, com menos ou mais estilo temos a ilusão de a enxotar ainda que, em boa verdade, façamos pouco mais do que enterrá-la fundo no coração

19.1.23

Para não perturbar a santa paz que o nascimento do Menino inspira nos lares da Humanidade, Ana Isabel, a mais nova das manas Pereira, esperou que janeiro repousasse em névoa e melancolia para comunicar à família o fim do seu casamento. Até então, ninguém ousou corromper o espírito natalício, quanto mais não fosse porque a imperatriz, Joaquim e a avó beirã vieram para a consoada e era fundamental exibir-lhes as alegrias que perderam por se enraizarem nas encostas brumosas do fim do mundo. Mas depois, na ressaca do fígado e do cartão de crédito, arrumados os enfeites e apagados os brilhos, os Pereira tiveram de ouvir na própria casa o eco da palavra maldita – divórcio. 
Mas porquê, porquê, porquê, perguntaram, mais pela incredulidade do que pelo interesse nas verdadeiras razões da filha. Atiraram à cara de Ana Isabel todas as suas falhas de caráter, assumindo à partida que a ela cabia a culpa do desastre. Egoísta, preguiçosa, desde pequenina que amua e vira costas sempre que o gozo não paga o trabalho e as maçadas. Ora, é dos livros e dos sermões que a preguiça não sustenta casamentos. É ou não verdade que, ao assinar o contrato e desfiar as juras defronte do altar, Ana Isabel comprometera-se a levar até ao fim a empreitada, mesmo que o amor se esvaecesse ou de outras formas, menos excitantes, se travestisse? Assim lhe perguntou a mãe – por palavras diferentes destas – enquanto o senhor Pereira abanava a cabeça a reprovar o fracasso daquela filha do meio, de quem esperava mais virtude. Ana Isabel, muito necessitada de colo, explicou que há muito tempo ela e o marido invisível se deitavam calados, dormiam opostos e acordavam estranhos. Entretanto, a menina exemplar cresceu e deixou de valer como pretexto para adiar a decisão mais honesta, que os salvará aos três de amargurarem juntos ou cada um para seu lado no sofá dos psicoterapeutas. 
Lígia, a irmã mais velha, não se aliou a ela como seria de esperar. Tão unidas na maledicência, na intolerância para com os pais, no desdém pela imperatriz, na inveja de Joaquim, deixam agora exposta a fragilidade do seu laço, demonstrando como tantas vezes o que nos liga aos outros, mais do que o entendimento profundo, é a existência de inimigos comuns. São os fantasmas, não o afeto, que sustentam a lealdade entre os companheiros de trincheira. Então Ana Isabel não pôde sequer contar com a irmã, que engrossou a voz para a acusar de imaturidade e fazer-lhe ver que, no médio prazo, o prejuízo de descartar o marido invisível iria revelar-se muito maior do que à partida ela supunha. Para não falar da instabilidade a que vais sujeitar a tua filha, como é que consegues ser tão egoísta? 
O irmão demitiu-se de opinar e enquanto afrouxava no sofá, procurando desembaraçar-se, com suspiros múltiplos, das contrariedades do dia que findava, das dores lombares e da moinha nas têmporas, pontuou a discussão como soube: ela é que sabe da vida dela. E foi assim que, em estrita obediência à própria natureza, fiel à sua moleza de caráter, sem raciocínio, esforço, sacrifício ou hipocrisia, o filho caçula do senhor Pereira disse a primeira coisa válida que sobre o assunto foi dita.

17.1.23

Sinceramente comovida com o laço amoroso que entre Alicita e Álvaro se aperta, a rapariga da papelaria passou a autorizar a menina a ir mais vezes ao pai do que aquilo que era hábito e decreto. Afinal, diz ela, o fim de semana a cada quinze dias é procedimento antiquado, próprio de separações ressabiadas, o que agora se usa é partilhar a custódia. 
Mas, ó filha, não dês muita folga à corda, dizem-lhe as velhas, que mãe há só uma e se não te pões a pau a menina desafeiçoa-te de ti. Pudessem elas entender – ou lembrar – de onde vem a moleza de coração da rapariga da papelaria! Acaso não percebem nela mais leveza, um sorriso mais fácil, o humor mais ligeiro pela manhã, as costas mais direitas, o peito mais dilatado, até a pele mais resplandecente, a confiança escancarada em cada movimento do seu corpo? Serei a única a notar-lhe os tiques dessa felicidade por natureza distraída e preguiçosa que dá nos enamorados e que faz de toda a realidade um facto secundário e adiável?  

13.1.23

Sei, desse saber de experiência feito, como os amores trágica e prematuramente interrompidos fazem sombra a todos os que vêm depois. A morte tem um pincel que lhes retoca os detalhes, o luto passa-lhes um verniz de brilho, a saudade cobre-os de um véu divino. É claro que há – não duvido, porque vejo e sei que são a maioria – quem, ainda mal levantado dos escombros, logo encontre outro abrigo onde matar todas as fomes. Mas esses, suponho que amem com uma ligeireza que a mim falta ou então são merecedores de privilégios que considero raros e de que cuja abundância, francamente, desconfio. 
Os homens que me quiseram depois desse que me morreu nos braços – e sobre quem edifiquei as minhas convicções a respeito do amor – pareceram-me sempre demasiado fracos. Alguns lamentavam demasiado, ou idealizavam demasiado, ou obedeciam demasiado, ou intrometiam-se demasiado, ou pensavam com demasiada previsibilidade ou qualquer outra demasia sem benefícios à altura dos de viver só. Porém, quantas palavras tenho escrito sobre cada um dos instantes em que, por motivos tantos e sem razões inteligentes, lhes consinto a intimidade! É que, ao contrário do amor, cuja substância transcende o léxico e não é subjugável aos grilhões da sintaxe, o desejo e o prazer urgem ser ditos, têm fome de verbo. Inquietam, acordam súbitos no meio da noite, têm o efeito do álcool, que tudo enaltece, dramatiza, desata, extrema, ilumina. É essa ilusão, essa dissolução de fronteiras, esse caos de significâncias, que permite ao desejo imitar o amor e arrogar-se de cantar com a sua voz. Mas está tudo bem porque se desse equívoco resultar, pelo menos, um verso ágil e espantado, terá valido a pena.

12.1.23

A fórmula é relativamente simples e, até agora, perfeitamente funcional: primeiro inventa-se e quando a invenção estiver banalizada e dela estiverem dependentes as massas ao ponto do dano evidente, aplicam-se taxas sobre o seu uso ou cria-se uma alternativa de custo superior. Ganha-se na primeira volta e ganha-se em todas as que dela advierem.

10.1.23

Convenhamos que, na vingança, o que menos importa é a temperatura de serviço. A apregoada vingança fria é já tão distante do seu propósito que, embora possa ferir o alvo, pouco nos satisfaz. O tempo dilui a fúria e, sem fúria, é modesta a dimensão do gozo. Eu prefiro confecionar a vingança em lume forte, de coração ainda atordoado e mãos trémulas. Raiva, dor, mágoa, despeito, tudo entra em combustão numa fogueira que, pela noite dentro, vai crescendo com as sombras, os fantasmas, as ventanias, os rumores nas camas dos vizinhos. Atiçada por emoções vívidas, acredito que a vingança perca em sofisticação mas compensa no que ganha em corpo e sangue ao erguer-se e caminhar avante como um soldado inebriado, suicida, disposto a tudo. Tantas vezes a cozinhei assim a horas mortas, a delirar sob o efeito inflamatório de golpes profundos, e, no entanto, nunca cheguei a servi-la, nem a quente nem a frio. Não é que eu seja boazinha. Sou antes preguiçosa e fico à espera que uma justiça de forças superiores jogue a meu favor e me poupe à trabalheira.