14.9.22

Não julgues que me desencaminham as voltas da tua língua. Jamais abandono o meu posto de vigia. É de olhos bem abertos que meço a tua competência e avalio o homem que fizeste do homem que a tua mãe pariu. Podes entrar e sair calado, de tudo o que possas valer o que menos importa é o que digas. O meu ofício é manobrar palavras, sei melhor do que tu como se puxa o lustro a uma mentira e se enreda a história justa ao sonho de cada um. Calado. Nem sequer tentes responder aos meus enigmas, resolver a minha melancolia, mediar os meus conflitos com o mundo. Tenho ambições bem maiores do que a felicidade. 

13.9.22

Há duas semanas que o foco das notícias, análises e preocupações sobre o início das aulas demonstra, uma vez mais, que não vamos ser capazes de ultrapassar a mediocridade habitual. Que volta haverá a dar a uma sociedade cujo sistema de ensino sofre do cancro da burocracia, do défice de visão, do vício das percentagens, da depressão crónica? Repetindo os mesmos erros seremos eternamente obrigados a lidar com os mesmos resultados. E o estado das crianças e adolescentes, a quem tem sido atribuída boa parte da causa do desastre, não é senão a sua maior e mais dramática consequência. 

12.9.22

Tenho lido por aí, entre blogs e jornais, que as tropas russas estão com a moral muito em baixo. Acredito que sim porque ir à guerra, seja qual for o lado da trincheira, é sempre um exercício de imoralidade. Só com um considerável desbaste na moral, enquanto coletivo ou indivíduo, se consegue levar a cabo atos de destruição e desumanidade. Mas o que me parece que querem dizer nos últimos dias é que as tropas estão com o moral em baixo. Ou seja, perderam ânimo e motivação. Estão desmoralizadas. A moral e o moral têm géneros diferentes porque significam coisas distintas. E nem sempre quando falha uma se ressente a outra.

11.9.22

No corpo nu do rapaz voador, aplico os curativos com a suavidade que só as mães e aproveito para adular toda a sua perfeição, de amorosa autoria, que nenhuma chaga corrompe. Não recuo nem vacilo. Mais do que as minhas, são as dores dos meus filhos que me fortalecem. Antes deles, sabia a ideia de que o tempo todas cura ou de alguma forma arruma e isso, por ser verdade, foi sempre o bastante. Mas com as dores deles aprendo a caminhar como os faquires. Não se trata mais do tempo que levarão a curar, mas do quanto me aguento impávida sobre fogo e lâminas para não os deixar tombar. 

8.9.22

Como uma grande parte das mulheres, não só da sua como de outras gerações, a mulher do senhor Pereira é acostumada a acreditar na própria culpa. A culpa das tentações que precipitam grandes desastres mas, miseravelmente, também dos incidentes ligeiros do quotidiano. Por isso vem a correr rua acima, afoita e ruborizada, e, mal abrandando para um cumprimento, justifica-se com o corpo todo torcido, que é a maneira de poder olhar para mim sem descurar o sentido e a urgência da marcha: quase me esquecia de ir ao pão. Não fosse o meu marido lembrar-me e nem uma fatiazianha na mesa. Desculpe a pressa, tenho tudo ao lume. Uma querida, tão grata ao senhor Pereira por lhe avivar a memória das tarefas que, por mútuo acordo, são da sua competência. Sem tempo para responder qualquer coisa cortês e inútil, fico a vê-la sumir na rua, dando magnífica prova da habilidade com que uma mulher pode equilibrar a aflição da criada sobre os elevados sapatos de marca da senhora.

6.9.22

O corpo do menino com cabelos de oiro velho e olhos de mar de inverno transborda da cama. As irregularidades ósseas absorveram já todos os nacos arredondados de carne em cujos sulcos eu perdia o nariz à procura de aromas lácteos, restos de poeira e ventania, vestígios de rebuçado. Às paredes do quarto trepam os cheiros primordiais da adolescência e eu abro a janela com a ilusão de poder espantar aquele futuro iminente, cheio de perigos e corrupção. Queixa-se da corrente de ar, defende-se, mas o tamanho do lençol já é pouco para acudir ao arrepio. Estranho-o como a um animal que ocupasse o ninho alheio. A voz é um rugido sem domínio, o apetite não acha satisfação, os dedos das mãos alongam-se como garras a segurar o travesseiro. Tudo é urgência, importância, paixão, vida ou morte, exuberância, fertilidade. Em tamanho, não tardará a ultrapassar o rapaz voador, ainda que dificilmente o iguale em destreza e ousadia. Longos veraneios a uma sã distância da minha autoridade vão fazendo dele um homenzinho porque, quando é de um cais sólido que se parte, a liberdade nutre toda a substância do corpo e mais ainda a do espírito. E agora que se ouvem os passos do outono nas redondezas, volta para casa assim: com mais um palmo de altura e dois ou três de independência.