24.4.25

O meu menino com cabelos de oiro velho e olhos de mar de inverno, que é amante de todas as coisas anteriores ao tempo dele, canta no duche, com um furor desproporcionado, yes, there were times, I'm sure you knew, when I bit off more than I could chew. Esta noite sairá, pela primeira vez, por sua conta e risco. O rapaz voador ajuda-o a arranjar-se, cede-lhe uma camisa, explica-lhe que botões pode desapertar, até onde fica bem dobrar as mangas, diz-lhe que não pouse jamais o copo, ignore provocações, proteja o cartão de cidadão e, enfim, divirta-se. Depois manda-lhe que desfile para mim. 
Mãe, aprecia o teu menino, que vai conquistar a liberdade.
Quem é este, pergunto, e foge-me o chão debaixo dos pés. Com os meus olhos de mãe, que são olhos de vigília e invenção, busco nele vestígios de candura, mas é tão tarde... A infância já vai longe. As feições de querubim, os cachinhos do cabelo, o aroma do vento na nuca, tudo agora à mercê da memória, esse lugar que a fantasia gosta de corromper com um ou outro delírio e por isso nunca é absolutamente certo nem seguro. Está a um passo breve, atabalhoado, indeciso, do homem que será. Às pressas, deito a mão a uma cebola, aplico-lhe um golpe bruto e pico-a miúda para chorar sem levantar suspeitas.

14.4.25

Fui esta noite a Barcelona recuperar a inscrição na escola de dança e mudar de vida. A primavera dá-me sempre estas ganas de partir. Não sinto a exaltação de certas vontades que dizem próprias da época, como arrumar, limpar, acasalar, renovar, dar à luz. Tenho antes vontade de ser outra coisa noutro lugar, não porque o que sou, onde sou e como sou me seja fonte de infelicidade, mas por um impulso migratório desprovido de planos, em cujo destino não caberiam os meus filhos, a minha história, a minha língua, o meu ofício. Há os que são curiosos por ver, cheirar, fotografar outros lugares, eu tenho a curiosidade pelas vidas que não escolhi ou não me couberam em sorte. Mas sobre isto dispenso análise, opinião ou conselho, e por isso regressemos a Barcelona. 
A orientadora do curso acolheu-me com mais condescendência do que entusiasmo. Ainda sabia, de memória, todas as peculiaridades do meu corpo mas também, infelizmente, as do meu feitio. Posso ficar? perguntei, uma alma desaninhada, suplicante, de mão estendida. Oh, querida, também não é preciso chorares. E autorizou-me a matrícula, sob o compromisso de eu me esmerar nos trabalhos escritos e nas avaliações teóricas para compensar a deterioração dos pés e a ferrugem nos adutores. É possível que ela ainda se recorde de quando eu passava a perna para trás da cabeça, em todo o caso, de que serve o que já tenha feito se for incapaz de o repetir? As artes do corpo não se expandem por efeito de acumulação, como o conhecimento ou a experiência. Ao contrário, esgotam-se no instante em que se exibem. O tempo é sempre um inimigo e dá instruções de recuo muito precisas e localizadas. Cada proeza acabará por resultar invariavelmente numa perda, um desbaste, uma dor, uma amputação. 
Márcia, uma rapariga exótica de olhos rasgados, pele de bronze e cabelo de azeviche, que, tal como eu, veio resgatar uma vida passada, adiantou-se a dar-me guarida se eu prometesse fazer-lhe uma francesinha todas as noites. Vamos ver se consigo, tenho tanto, tanto que estudar! E já não me lembrava de estar tão feliz num sonho.

11.4.25

Aborígene! Obeso! Invisual! Vociferavam assim, sobre o árbitro, os furiosos na bancada. Ninguém me contou — ouvi eu, sempre de ouvidos espantados com a eloquência nacional. Tão rápido aprendemos que, ao polir a linguagem, contornando as ofensas primitivas que a moral coletiva já aprendeu a rejeitar, podemos odiar com a mesma força, humilhar em público, reduzir a lixo os que, bem ou mal, ponham travão às nossas ganas. Ah, saibamos escolher o verbo e jamais precisaremos de consertar o caráter. 
Como a história da humanidade tem demonstrado, a civilização não triunfa sobre a selvajaria. Não domina o animal, a sua urgência, as suas fomes, os seus instintos, apenas lhe vai ajustando o traje para que possa sempre entrar pela porta da frente e desfilar na dianteira dos cortejos sem que ninguém lhe peça contas.

9.4.25

A propósito do que ando a ler —  Eles pensavam que eram livres, Milton Mayer —  sobre a forma como, nos anos 30, os alemães comuns, cidadãos vulgares, encorparam o nazismo sem noção de que precipitavam o inferno, dou comigo a pensar no caminho que tomámos até ao estado em que hoje nos vemos. Não nos comparo a eles, nem em motivos nem em aspirações. Nós não temos nem a inocência nem a crença cega num ideal enviesado de salvação. Mas temos a cobardia e o pensamento à deriva, um torpor sentimental que nos mantém sempre em lume brando, distraídos, convenientes, ocupados na manutenção dos empregos e na conquista de um metro quadrado a preço justo. Vamos às urnas, gratos pelo que abril nos deu, mas habituados já a escolher entre fantoches e fanfarrões, entre a miséria, a indecência, a imbecilidade, a ladroagem e a cara-de-pau. Pobres de nós, tão civilizados e instruídos, quem diria? 
A mim e aos da minha geração, fizeram-nos fracos. Nascemos livres sem esforço, crescemos com o dinheiro a entrar por todas as portas do país, vimos abrirem-se estradas, caírem os muros, entenderem-se os opostos, assinarem-se os tratados, aliarem-se as nações. Que promissor o mundo da minha adolescência, afinal a humanidade é cheia de boas intenções, oh, os maus topam-se à distância e a tempo nas suas latitudes retardadas e surreais. Aos vinte e cinco anos podíamos ser empresários e ter casa própria e os nossos pais bendiziam as nossas oportunidades, direitos e garantias, frutos suculentos que colhíamos do amargor, das penas e dos gritos que eles haviam plantado. E foi assim que desaprendemos o hábito da resistência e do combate, com orgulho e boa fé depusemos as armas, descansámos das desgraças do mundo, apostámos as fichas todas na realização profissional. Foi assim que fomos ficando cegos e egocentrados e agora temos os braços flácidos, os punhos frouxos, as nossas paixões são mansinhas, quase melancólicas, e ainda nos dizem que temos falta de sono, falta de sol, falta de saúde, falta de amor.
É direito de cada um escolher a quem deve obediência, em que mãos entrega o seu caráter para efeitos de desresponsabilização, sob o jugo de que rédea o seu passo é acertado. E a História está cheia de fracas escolhas. Mas nós, pior, já nem sequer escolhemos e assim acabaremos por devolver, de cabeça baixa e na mesma bandeja em que nos foi dada, a herança dos nossos pais.

6.4.25

Para efeitos de estudo do comportamento das massas e do valor e cotação atribuídos sob o efeito de rebanho, o que distingue a série "Adolescência" do chocolate do Dubai?

4.4.25

É raro, mas às vezes também acordo a meio da noite com todos os meus medos estendidos comigo na cama. Que dia será o de amanhã? Incapaz de ajustar a vida que tenho à desgraça do mundo —  um de nós está muito errado e recusa-se a ceder —  procuro exercitar o hábito da esperança, encosto-me ao coração bravo dos meus filhos, sabendo embora que também eles se desgostam e talvez em segredo me acusem de os ter iludido à nascença. Que triste é o tempo da raiva e da guerra que nos coube, dos homens acossados, da turbulência moral, da imprevisibilidade da hora seguinte. Eu sei, nunca foi de outro modo. Muitos houve assim e até bem piores, mas não se vangloriavam da civilização, das leis, da ordem e da democracia, nem discursavam pela justiça ajeitando os nós de gravata, nem alardeavam as conclusões dos mais recentes estudos sobre a saúde mental e a importância os afetos, nem havia métricas para os índices de felicidade dos povos avançados.
Por estas e por outras é que sou ateu, diz o meu menino com cabelos de oiro velho e olhos de mar de inverno. É verdade, se ao menos deus desse um ar da sua graça! O mundo inteiro à espera e ele nada, nem sinal de vida, sofre desse mal dos tiranos que alimentam o culto à personalidade mas não se prestam a dar satisfações a ninguém. Já muito faz em salvaguardar a perfeição do universo, as forças que regulam o movimento dos astros, o ocaso que se cumpre apesar de todas as catástrofes.