27.11.23

Ao cabo de tanto tempo a marear na sua pele, desinteressada do destino e do dia seguinte, feliz com o acordo mútuo de economia sentimental, aliviada de o ver partir depois do êxtase e de uma história, dei comigo a desejar de coração o homem cínico e pensei: estou perdida. Tenho a certeza, foi a ternura dele que me rasteirou. 

14.11.23

É só na hora da confissão que a mentira se torna uma indecência. Antes disso, é inconsequente e amoral. Acredito nisso quando ouço o sermão de Lígia, a mais velha das manas Pereira, ao sair de casa com a sua menina exemplar:
– Se me voltas a mentir, tiro-te tudo, ouviste? Tiro-te tudo! 
Vê-me e sorri muito, a compor-se da vergonha de ter sido apanhada nos bastidores da sua representação quotidiana, sem o retoque da maquilhagem, o figurino da elegância e da sensatez, o devido ensaio de boas maneiras. Que terá feito a menina que justifique ameaça de pena tão pesada? Escondeu uma má nota, gastou o dinheiro das fotocópias no quiosque das gomas, passou a tarde na ramboia a pretexto de um trabalho de grupo? Com a adolescência a rebentar em todos os poros da face, a menina revira os olhos e desacelera, ganha distância da mãe. Sabe que tudo teria continuado na paz dos anjos, sem mortos, feridos ou percalços, se a verdade, seja qual for, não tivesse vazado. Por acaso cometeu algum crime, fez mal a alguém? 
– Não, mas não te admito que me mintas. Não te admito.
E perante a desproporção daquela justiça materna, em que mais pesa o orgulho do que o ensinamento, a menina anuncia: para a próxima mentirá com mais cautela e inteligência. 
– Veremos, minha menina, veremos.
Não. Obviamente, não verá. 

9.11.23

A professora que vive com três gatos pretos e um ror de tralha acumulada divaga no pão quente sobre a turbulência política e aproveita para fazer saber que está de baixa. Os nervos sucumbiram, já não há medicação que dê sentido a esta vida e o médico deixou claro que só voltará a pôr os pés numa sala de aula quando recuperar a força anímica. Mas enquanto puder fugirá desse dia como o diabo da cruz, nem que tenha de falsificar lágrimas e reinventar as suas dores. Cada hora com aqueles demónios é um calvário, falta-lhes tudo, intelecto, interesse, boas maneiras, safa-se um ou outro de espírito mais vivo e curioso mas até esses, com o tempo, acabam arrastados pela maioria. Por culpa da escola, todas as noites – todas, todas, não garante porque é preciso descontar as que não dorme – cai na trama de pesadelos que prefere nem contar e quando acorda dói-lhe tudo, as pernas desobedecem, a garganta fecha-se, a visão turva-se, os dedos das mãos incham.
– Então e os dias com o rapaz em Barcelona, princesa?
Uma canseira, ele a querer mostrar todas as magnificências da capital catalã e à professora só apetecia o aconchego de um sofá, o entendimento de um livro de poesia, uma água fresca com limão, a ternura fácil dos seus gatos pretos. 
– Dá Deus nozes, princesa...
Quais nozes, qual quê, aquilo parece uma feira popular, carreiros de gente, empurrões, escarcéu, toda a gente olha para tudo e ninguém vê nada, não há silêncio que favoreça a contemplação, o mundo muito desarrumado pelas ruas e aos solavancos nos monumentos, tantas raças, línguas e cores, um compra e vende em cada esquina, talvez exagere mas foi assim que as coisas lhe pareceram. E o rapaz sempre a puxar por ela. Custa aos filhos compreender que as mães se esgotam nos primeiros vinte anos de vida deles, que depois disso a folia e a aventura já não seduzem? Que interesse há em andar para lá e para cá, ir para dizer que foi, ver para dizer que viu? Chegando ao fim, voltando a casa, que diferença fez? 
– Então, princesa? Alargou horizontes, sei lá...
E que diferença fez, repete, que diferença fez? Pegue-se num livro de poesia, vá, num bom livro de poesia. Não tem mais e melhor efeito? A funcionária do pão quente perde argumento e palavra. De poesia não pode falar, nunca lhe deu para ler e mal teria tempo para isso, mas se houvesse dinheiro, era certinho que viajava todos os continentes.
– Tem de se dar mais à felicidade, princesa.
As coisas não são assim simples, mulher. Fala da felicidade como se fosse um vento que se apanha ou um traje de lantejoulas que se veste de manhã e dispõe logo a bailar com o mundo o dia inteiro. Que aberração! É direito de qualquer um ser infeliz em paz e sossego, ter um canto da casa mal iluminado e com pó de muitos anos ou uma dor de estimação para alimentar todos os dias. Até de uma princesa. 

8.11.23

– À mulher de Penedono, faz-lhe falta ter um dono.
O senhor Pereira acabou de descobrir o poder das rimas e contenta-se de ter arranjado maneira de dizer as suas verdades provocando mais riso do que indignação. Diz que agora lhes chegam as ideias de repente, às vezes enquanto lê o jornal ou toma banho, e pede à mulher que as vá anotando num caderninho, até porque está a pensar usá-las para animar a família na consoada. Não bastassem à senhora os deveres da governação doméstica, acrescem agora os de secretariar o poeta recém-nascido e coletar os seus delírios.
– Com todo o respeito e não se ofenda a menina, mas esta de Penedono também dá para si, não dá?
– Por acaso, não. Já lhe disse que a minha terra é a norte, na margem direita do Douro.
O senhor Pereira estranha que me rale mais o lapso geográfico do que a estocada machista, mas creio que estando além das minhas possibilidades desenferrujar toda a estrutura de valores em que, sem brecha de humildade, o septuagenário assenta, posso ao menos fazer donativos à sua pobrezinha cultura geral. 
– Não me leve a mal, mas a menina é um bocado picuinhas. Aquilo é tudo mais ou menos por ali.
Insiste em fazer do país interior uma amálgama, um ali ou além ou acolá que aos seus olhos diminutos não diverge no atraso social, cultural e mental. Transmontanos, beirões, alentejanos, vai dar tudo no mesmo, safam-se talvez os minhotos porque favorecidos pelos ventos do dinamismo galego ou a menina não se lembra de quando íamos todos às compras a Vigo, que cá não havia nada de jeito? 
Todos não, senhor Pereira. Com o carimbo da minha boa memória certifico que em romarias do consumo nunca os meus pais embarcaram e muito menos arrastaram a infância dos filhos para tais devoções. Noto que se abespinha com a ideia de que eu possa estar a reduzi-lo a um vulgar deslumbrado, mas, enfim, às vezes os dias não correm de feição e se os houve em que eu saí diminuída pelas suas imbecilidades, outros tem de haver em que o troco seja dado.
Porém, este homem para derrotas não foi talhado, muito menos perante uma mulher, pois então é muito mais do que a razão que está em jogo – é a dignidade. E o trunfo, como habitualmente, bate-o na mesa mesmo antes de me virar costas.
– Olhe, fica já aqui o compromisso. Na semana que vem, a menina vai ter uma rima só para si.