31.5.21

No dia em que conheceu o pai dos meus filhos, a minha avó pediu-lhe, pelo amor de todos os santos, que me domesticasse. Foi por convicção, e não por escassez de vocabulário, que escolheu o termo domesticar. Pese embora o seu próprio desgosto amoroso, atribuía aos homens o mérito de salvar a dignidade das mulheres, que deveriam recompensá-los com tanta justiça na mesa como na cama e consentir que recorressem a outras para trabalhos mais experientes ou indignos de senhoras casadas. Estaria garantida a paz do senhor e a rotação da Terra se elas não reclamassem, até porque da trabalheira de pensar diferente ou querer melhor raras vezes vem rendimento e menos ainda conforto. Por isso as insatisfeitas eram perigosas, faziam descambar o casamento em tragédia, a família em vergonha, até o mundo em guerra. Então, para a minha avó nenhum acontecimento nefasto tinha a inocência ou a fatalidade dos frutos do acaso. Tendia a procurar sempre a mão feminina que lhe tivesse dado origem e, na dúvida, via em todas as mulheres sinais das almas que o diabo corrompeu e que aos outros sugam a energia, fecham os caminhos, rasteiram os êxitos. Para ela, tratando-se de mulheres, a presunção da inocência não passava de um ato de caridade, um polimento civilizacional, um descargo de consciência, em suma, um prazo que de favor nos concedemos para preparar o embate com a perversidade original. 

27.5.21

Os pais justificam aos filhos a disciplina, os castigos, as exigências, os sermões e até algumas injustiças com o argumento de que estão a prepará-los para a vida, como se a vida fosse qualquer coisa que só acontece depois dos vinte anos. Esgotam-lhes a infância e a adolescência a treiná-los para se habituarem ao mundo que eles próprios começam a lamentar assim que se levantam da cama. 

26.5.21

Julgo que as comadres resolveram as suas tricas ou naturalmente as esqueceram por não compensar a inimizade. Verdade seja dita, só uma provocava. E a outra, que me parece gente bem intencionada, nem se ocuparia a responder não fosse dar-se o caso de as alfinetadas serem ouvidas por outros. As provocações subtis, essas que deslizam num cumprimento cordial ou sob o disfarce de um largo sorriso, são as que mais cutucam os nervos e funcionam como imanes para quem não gosta de perder nem a feijões. Porém, se esperavam que um cavalheiro as levasse a dançar para as distrair daquele jogo de bem falante hipocrisia, correu mal. Diz-se que entre marido e mulher não se mete a colher, mas para um certo tipo de homens é entre mulher e mulher que convém ficar à margem e evitar tomar partidos, não vá a vida dar voltas que os levem ao regaço delas e é bom que então sejam recebidos sem mágoas para uma dança que lhes apeteça, seja minuete ou sarabanda.
Acontece que uma alma por natureza desassossegada precisa de transpirar muito durante o dia para, caindo a noite, alcançar alguma paz. E se destas duas comadres que se juntam à conversa nos salões há uma que só vai para se distrair das dores quotidianas, a outra espera dali genuína diversão e por isso investe muita energia a arrastar os folhos e os excessos do seu traje para trás e para diante, abrindo alas e impondo-se entre os pares dançantes, dando batidinhas com o leque nos ombros deste e daquele, tirando as medidas aos modos e às vestimentas, deixando um reparo aqui, outro acolá, sempre com a ideia de que é muito desejada a sua opinião e por isso dando-a como quem faz um favor e só por caridade não manda fatura. Acabará o dia certa de que por onde andou fez justiça, deixou a palavra merecida, avisou do que devia, pôs cada qual no lugar. Há de ser deveras cansativo ocupar-se a varrer os salões da freguesia com a cauda do vestido. E imagino que se não cair à cama por, enfim, ter o espírito apaziguado, cairá certamente por já não poder com um gato pelo rabo. 

20.5.21

Saio finalmente de casa à procura do mundo mais fraterno e consciente que os otimistas juraram que havia de erguer-se dos destroços. Estava sinceramente disposta a repreender-me por descrer da humanidade e ter menosprezado o poder de um vírus na transformação das coisas essenciais. Ensaiei o sermão que, na volta, me daria ao espelho. Agoirenta, fraco exemplo para os filhos, onde raio vou buscar motivos para duvidar que o que vem é sempre melhor? Mas quando saio só reencontro o caos. Os automóveis levados em solidão, os insultos pelas frinchas dos vidros, o lixo amontoado nos contentores, as crianças com as costas vergadas ao peso injusto de mochilas, instruções e avisos. Lá está a rapariga que madruga para suar no crossfit, à mesma hora de antigamente, sovando as palmas das mãos do treinador com uma ladainha de motivação que não há de diferir muito da que a minha avó rezava à virgem Maria. Nos semáforos do cruzamento maior, os gatos vadios desarrumam o ecoponto e os toxicodependentes mendigam a sobrevivência. Um deles, de barba e cabelo ruços, parece-me um cristo a perguntar porque o abandonaram depois de o deixarem cair em tentação.  Ouço dizer que à porta das lojas de roupa e sapatos as filas são tão grandes e teimosas que parece dali esperar-se o pão para a boca. Todas as artérias estão entupidas e se não é pelo trânsito há de ser pelas obras. É preciso insistir na transformação da cidade, agir como se nada fosse, cavar fundações, alargar estradas, abrir terraços com vista, operar os fluxos subterrâneos. O progresso continua, valente, ruidoso, cheio de ideias e estratégias, mas que cura traz ao desespero e ao cansaço? Abre e fecha, tira e põe, faz e repete, repete, repete, repete, repete. 
Lá longe, o mar está tão bonito e eu podia fazer dele um verso ou um retrato, elogiar as maravilhas do mundo, dar graças aos deuses pelas magnificências da sua criação, legendar as sobras aproveitáveis do dia com a importância das pequenas coisas. E depois seguir em frente, a fazer de conta que sobre o resto não ouço, não vejo, não sei.

18.5.21

Sem robustez de intelecto e estabilidade nas emoções, desista quem tiver intenção de fazer do escárnio e da maledicência uma graça que dê gosto a quem lê. É que se por descuido vaza nas entrelinhas o cheiro fétido da inveja ou a poeira de um rancor guardado, num instante fica desacreditado quem pretende desacreditar. Então, antes de tentar a arte de descompor alguém publicamente, é bom ter ao alcance um espelhinho de bolso e, por via das dúvidas, verificar se nos túneis assombrados da própria consciência algum fantasma acordou a pedir libertação.

13.5.21

Daniel Oliveira - não o que faz chorar mas o outro - perguntou se os homens terão a noção da fronteira entre a sedução e o assédio. E não foi o único a levantar a dúvida. Ora, não bastassem os que são tratados como mentecaptos pelas suas próprias mãezinhas e esposas, que os louvam e gabam quando eles se encarregam do tacho, dão banho à cria, escolhem flores ou vão ao supermercado sem ajuda, como se grandes favores fizessem e de complexas empreitadas se tratasse, por este andar qualquer dia está-se a bater palminhas aos que têm noção do alcance dos seus atos e a atirar confetis àqueles cuja moral não derrape na fronteira. 

8.5.21

Agora que as árvores da alameda começaram a florir, vejo pela primeira vez a mulher do senhor Pereira a passear sem urgência e com as netas pela mão. Embora tenham crescido muito, as meninas exemplares continuam desengraçadas, com olhos de animal de pasto, sem cintilação nem curiosidade, mas capazes daquela arrogância defensiva com que certas crianças dão sinal evidente do erro cometido na sua educação. No encontro, ao qual não tenho como fugir, gabo-as por cortesia, digo que estão quase umas mulheres. E logo a avó, ajeitando os fios rebeldes do cabelo das meninas, corrige: não, estão é umas senhorinhas, é o que é, como se mulher fosse um erro de sintaxe, uma indignidade na gramática familiar dos Pereira. 

5.5.21

Violeta-de-prateleira 
muita história tem contado. 
Cada dia uma maneira, 
uma arma e um recado. 

Primeiro era de navalha, 
depois mostrou o chinelo, 
por fim aumentou a tralha 
com a foice e o martelo. 

Vejam só como reage 
quando não resta mais nada. 

No princípio ela jurou 
meter-nos a todas na linha, 
nenhuma planta poupou 
a esta ameaça mesquinha. 

Mas agora, meus senhores, 
desmonta-se a fantasia: 
a alma de certas flores 
é bem dada à cobardia. 

Afinal não se aguenta 
com bravura de felino. 
Então mima a suculenta 
e acarinha o pepino. 

Eis as artes de graxista 
que movem esta megera.
É assim que ela conquista 
a nata da blogosfera. 

...

Veio-me agora uma ideia
em que ambas podemos ganhar: 
pôr um fim à verborreia 
com dois copos pra brindar. 

Não é por fôlego esgotado 
nem por medo de perder. 
O leitor é que, coitado, 
já está farto de me ler. 

Valeu a pena a batalha, 
Violeta, minha querida. 
Isabela (deus me valha!) 
já chora com a despedida.

4.5.21

Compreendemos agora que esta habitante de serenas prateleiras em fundos minimalistas onde se fazem "destralhes" radicais à la Marie Kondo para simular a empatia com os simples, acabou a sentir falta de um propósito de vida. Por desfastio, terá esticado a haste até às poeiras da biblioteca, enfiou as pétalas nas páginas de Proudhon, depois Marx, e pensou que para efeitos de diversão talvez lhe assentasse bem o traje da rebeldia social e os trejeitos do velho ressabiamento anti-burguês. Muito bem. Prevemos que não tardará a rebelar-se contra a mão que a rega, rebentará o vaso de onde cospe revoltas adolescentes e juntar-se-á às camaradas selvagens que tanto venera, as do campo, as que suportam ventos e aguaceiros, as que de sol a sol trabalham a terra com as próprias raízes e murcham por falta do tratamento merecido. Aplaudimos. Basta, porém, olhar para ela para saber que, uma vez por mês, tornará a casa para se limpar da poeira e do cheiro a erva e, claro, recolher a mesada, cuja proveniência, nessa hora, pouco lhe importará. 
Mas não é a única. Outras espécies se entusiasmam à procura de um sentido para a vida que tenha feição verdadeiramente revolucionária e original. Eis uma suculenta a apregoar os nobres valores da diversidade e da inclusão, tentando comover e ganhar likes. Contudo, repare-se como subtilmente descarta a alface para fora do seu vaso, que é como quem diz somos todos iguais, desde que não me atrapalhes
Enquanto isso, Isabela boceja. Não mexe uma pétala para se defender. Aristocrata, burguesa, mimada, intriguista, tudo isso e o que mais quiserdes. 

3.5.21

Prega o senso comum que entre os efeitos colaterais de provas e provações está tanto o reforço dos laços entre os que de verdade se querem bem como o afastamento definitivo daqueles que só por engano ou conveniência estavam perto. Por mais que doa, a prática confirma sempre o cliché. Um monte de destroços só pode servir de trincheira ou de muralha. 

2.5.21

A orquídea cujo nome não repetimos para manter este espaço livre de impurezas, coitadinha, perdeu a firmeza e a fibra. Recordamo-nos de se ter apregoado rija e sanguinária, fêmea de guerra e faca na liga, protagonista de números de circo e crimes passionais, levando-nos a imaginar que já enfeitara balcões de taberna, psichés de prostíbulo, covis de máfias e contrabando. Mas, oh, não é ela que vemos assomar agora à marquise gradeada do rés-do-chão/trás  de onde só em sonhos saiu , desvairada em exclamações e interjeições, ofendida desde a raiz, abespinhada até ao labelo, "eu não sou nada disso, ai que eu sou isto e faço aquilo"?   
Ah, paroles, paroles, paroles...

1.5.21

É sabido que em enredos fantasiosos se perde forçosamente um advogado de causas inúteis ou desonestas. O rol de argumentos, enumerados em jeito de façanha, procura convencer a audiência do que não é óbvio nem sensato e assim, não sendo pela razão, julga vencer pelo espanto. É um caminho legítimo, embora de fôlego curto. Nós preferimos outro. Aqui, não se pratica o alarde de virtudes, pois isso é próprio dos desesperados ou dos que estão à venda e o retrato de Isabela é quanto basta para notar que ela não é uma coisa nem outra. Já outras, rugindo isto e aquilo, que fazem e acontecem, que cospem e castram, só têm para mostrar uma corola. É bela, sim senhores, mas afinal, oh... toda aberta, tão recetiva, quase suplicante, revelando que afinal não floresce para guerrilhar mas apenas para dar-se às bicadinhas de um pássaro ou à vibração das asas de um inseto, amarrada a uma estaca, que é, entre todas as formas de submissão, a favorita das orquídeas comuns. 
Cuidado com as palavras: Isabela não tomba. Isabela repousa, estende-se e dá-se ao prazer, aproveitando as brisas para se balouçar no couro rijo do tamborete. Em menos de um ai, a primavera vai-se e seria de pouca esperteza gastá-la em conflitos e atritos, onde mais depressa cansaria a sua beleza do que ganharia por ela as justas medalhas. De resto, para quê dar provas, detalhes, justificações, pormenores ou apreciações à lupa, em altíssima definição e contraste, como há também quem faça para seduzir à pressa, sem notar o risco que corre? Nada disso. Aquela que quer continuar a deslumbrar com o seu bailado jamais deve cair no erro de mostrar, de perto e descalços, os pés com que dança.

Andam por aí outras orquídeas que, por razões não identificadas, se presumem superiores a Isabela. Mas é difícil ultrapassar Isabela porque Isabela nem entra sequer na corrida para a mais aprumada, a mais vertical, a que mais se aproxima do céu, dos pássaros, das rainhas, dos ministros, dos deuses, dos astros. Embora a natureza tenha mandado que assim fosse, o destino opôs-se, a dona descuidou-se e assim ela acabou por desabrochar na direção da terra, sua mãe. Não a censuro, pois de cada vez que olho para uma fileira de orquídeas comuns tenho a impressão de ver um exército de fêmeas com a função única de servir beleza ao olhar desconsolado dos seus donos. Então Isabela é isto, este luxo estirado no colo antigo de um tamborete, esta languidez, livre de estacas, dívidas e ganâncias. Quem chegar perto até ouve o suspiro que vaza de cada uma das suas corolas e pressente o frémito, a ternura e a expectativa de uma virgem que está prestes a confiar-se ao primeiro amante.