26.1.24

Na boca do homem cínico sobrevivem, cheias de senso, palavras que a preguiça e as importações arredaram das escolas, dos diálogos quotidianos e até da literatura recente. Porém, ele não as escolhe complexas ou pretensiosas, porque usar o verbo como instrumento de vaidade é próprio dos idiotas e oposto ao seu feitio. Escolhe-as por critério de rigor, para ser fiel, para me dar a visão do que eu não presenciei e só posso imaginar: a sua infância, a sua façanha, o seu ato falhado, as atribulações do seu dia-a-dia. Tudo o que ele diz tem o corpo cuidado, digno e superior da língua portuguesa, da língua que venero e da qual sou aprendiza deslumbrada, da língua que opera e edifica as minhas coisas miúdas. O homem cínico manobra-a com sabedoria e generosidade e é com ela que me deita, é com ela que me despe. 

25.1.24

Em pequena, gostava de ler o dicionário freudiano de interpretação dos sonhos, livro que apareceu entre a vasta e eclética biblioteca do meu avô materno. Por muito tempo eu e as minhas irmãs tivemos o hábito de consultá-lo quotidianamente, na esperança de decifrar os enredos que, dormindo, fabricávamos. O livro satisfez as curiosidades apressadas e momentâneas, mas não a sede de entendimento. O mundo dos sonhos permanece para mim um mistério e nada do que diga a gente das ciências da psique – das exatas às ocultas – me contenta. Na semana passada, por exemplo, enamorei-me de um homem quadrado e dediquei horas a lixar as suas arestas para que ele pudesse amar-me sem me magoar. Ontem, perdi no aeroporto um cachorrinho que uma amiga me confiara dentro de um saco de compras do continente. Hoje, comecei a trabalhar como estafeta numa fábrica de pantufas. Em certas noites cometi crimes sórdidos, com gozo e violência, sem arrependimento, para fazer cumprir uma justiça em que cegamente acreditei. Mas, no meio de tudo, o que é realmente curioso é que, tantos anos depois, a minha subconsciência continue a inventar alternativas à tua morte. Entras pela casa como se fosse território do teu domínio e justificas a ausência com razões que a cada noite mudam: uma reunião de trabalho que se complicou, uma volta ao mundo decidida num repente, outra mulher, outra família e, às vezes, de caráter transfigurado, muito azedo, insolente, dizes que é que foi? que queres? deixa-te de merdas, fui só ali num instante. Parece impossível que, noite após noite, continues a repetir a estocada. E que, para te manter vivo, eu seja capaz de inventar tudo, até o que o meu coração jamais suportaria.    

23.1.24

Vivo mal-entendida o mundo e não tenho interesse absolutamente nenhum em resolver isso. Às vezes adoço, satisfaço-me com desimportâncias como a ordem da casa, as boas palavras desses com quem convivemos de raspão, o sol nascente no quarto, um bolo no forno, um chazinho, enfim, a doçura quotidiana que adormece e cria poesia pálida. Cedo apenas porque não quero que os meus filhos me vejam como as árvores que racham por se oporem demais à ventania. Mas esse bem-estar de pele e circunstância dura pouco, logo recaio no vício da descrença, que, admito, também tem os seus cómodos, facilidades e conveniências. 
Então, quando o senhor Pereira vem direito a mim com ânsias de gaiato, a cantarolar Gente que é lá da Régua / não se espera que dê trégua, e me saúda com a palmadinha na face e o olhar daqueles pais que só condescendem por terem também o poder de castigar, penso que talvez seja ingrato, da minha parte, retribuir as pequenas graçolas da vida com relutância e má cara, desconfiar tanto dos tempos de paz e dos esbanjadores de felicidade, recusar-me a falar nessa língua distraída que conjuga sempre os verbos no modo simples do tempo bem passado. Esforço um sorriso que encubra a irritação, digo feliz ano novo, deixo que aperte as minhas entre as suas mãos e, por razão que ignoro e não vale perguntar, ele comove-se. Acho que o senhor Pereira gosta de mim. Mas de um gostar cansado, rendido, que não escolhe mas acata, que é cúmplice no descontentamento, embora oposto na sua causa.

16.1.24

De quem seria o maior susto, a mais terrível experiência: do adulto que retrocedesse às horas violentas do próprio nascimento ou da criança que, ao vir ao mundo, antevisse toda a carga que o futuro lhe reserva?

23.12.23

Caríssimo deus, que entregaste o teu filho aos Homens de carne e osso para que o celebrem aos empurrões nos shoppings, fartos de canela e açúcar, vermelhos do tinto e dos rancores mal disfarçados à mesa da consoada, não te sou devota, nunca fui, embora os teus mistérios me intriguem e ensine as minhas crias a refletirem sobre a possibilidade de seres. Caríssimo deus, nunca te pedi nada, ou pedi? Nas vésperas de exames, na hora do parto, nos cortejos fúnebres, avancei sozinha com o meu medo e a força das minhas pernas, jamais te implorei favores ou te culpei pelos desastres. Podes até estar aí, talvez atendas aos jogadores da bola no instante do penálti e a outras causas igualmente meritórias e urgentes, mas eu tenho o meu orgulho, prefiro as coisas à minha maneira e, de resto, depois do descanso ao sétimo dia nunca mais trabalhaste com brio e ambição. Portanto, não espero que me dês mais do que o que tenho, nem venho pedir-te de volta os meus mortos, a minha juventude, a minha fé na humanidade, ou sequer exigir sobre isso ajustes de contas. Mas ao menos, caríssimo deus, se é mesmo tua a vontade que os Homens pedem que se faça por nela confiarem ainda e apesar de tudo, não arranques dos meus braços mais ninguém. Aqueles que por amor considero, acolho e sigo, a ti servem de pouco, são fracos e defeituosos, não suportariam asas de anjo, mas a mim salvam-me, todos os dias, do pecado mortal da resignação.

19.12.23

Aplausos para o ciúme, um inventor de primeira categoria. Apreciem a sua espetacularidade, deslumbrem-se com os efeitos imaginários que às coisas reais ele acrescenta, notem o poder dos seus fantasmas e a agilidade dos seus malabarismos narrativos. Vejam em quantas palavras consegue ele transformar um silêncio inofensivo e distraído. Com que passe de mágica muda os figurinos, troca as vestes do anjo pelas do demónio, mata a bela, mostra a fera. Espécie de embrião da loucura que, felizmente, na maioria dos casos, a sensatez faz abortar a tempo, o ciúme deixa ainda assim marca azeda, estrago, pena. Irmão do despeito e do desdém, perigosamente aparentado com a raiva, é preciso dominá-lo como às bestas e colocar-lhe mordaça para evitar que mais tarde chore, arrependido do próprio desbocamento. Diga-o o senhor Pereira que, ao ver passar a viúva de mão dada ao homem de bigode, sussurrou para o filho, trocando com ele esses olhares que certificam o atávico entendimento de machos:
– Esta mulher, pela maneira como se pendura no sujeito, do que tinha falta sabemos nós. 
O idiota, que se por educação é fraco podia ao menos por vontade ser robusto, reagiu com a neutralidade habitual. Talvez lhe escapem os verdadeiros motivos da baixeza do pai, ignora certamente que ele cobiça e bajula a viúva desde o primeiro dia, que o perfume dela é o bastante para encorpar a sua virilidade e que lhe toca a pretexto de gestos simples de cumprimento, como se fosse descuido. Mas porque os atos das mulheres não cessam de molestar o espírito dos homens ignorantes, o idiota pôs-se também a pensar na imperatriz e nas razões que a levaram a preteri-lo. Ou assim presumo eu porque, ao cabo de algum tempo, já a viúva tinha dobrado a esquina, desabafou ao pai:
– Elas andam todas doidas ou é impressão minha?

14.12.23

Quando o meu corpo adoece, que ingrato! A vida inteira o amei sem preconceito ou reserva, dei-lhe do bom e do melhor, protegi-o das ofensas, da corrupção e da cobiça dos fracos. Amei o seu cheiro lácteo no princípio de tudo. Amei os joelhos e cotovelos rasurados nas horas vagas da infância, ferida sobre ferida, sem dar tempo à cicatriz. Amei-o desconsolado, febril, vulnerável, com odores de poeira, vento, caramelos, suor, entrincheirado no colo materno, a temer as demasias do mundo. Amei depois, na dúvida, os brotos nuns seios pequeninos a anunciar o tempo difícil de ser mulher e a revelação do sangue vivo entre as pernas, numa tarde de maio. Nessa floração dorida, amei-o com ansiedade e fulgor, escrevendo poemas vagos sobre coisas imitadas aos adultos, que encaixavam, como peças à medida, em toda a minha novidade sentimental. Amei-o orgulhosa, de repente, ao notar que nele despertava uma planta carnívora. E, tal como os pais por amor fazem aos filhos, disciplinei-o e protegi-o de si mesmo, das suas urgências, da desmesura de certos sonhos que de noite eram asas e de dia insensatez.
Aprendi mais tarde a amar o meu corpo também através do corpo amante de outros, entre o temor e a veneração, como se ama os deuses – pelo mistério, pelo absoluto, pela dádiva. E amei-o depois de dar dois estranhos à luz, aturdido, fragmentado e devoluto como gente de fortuna que num só golpe caísse em desgraça. Amei a sua morosa reconstrução, os escombros, os despojos de sangue, a cicatriz no sexo, a servidão total às crias que dele faziam ninho e alimento, ignorantes da violência que lhe impunham. Tão estranho a si mesmo, este corpo mereceu ainda assim o meu amor. Amei-o piedosamente quando foi mortalha de outro e em dobro o amei quando depois tombou coitado numa cama enorme, na mais longa de todas as noites. A respeito do meu corpo jamais disse más palavras ou as permiti. Fascinam-me as suas assimetrias, os seus humores, o seu microscópico labor, a sua autoridade, a biografia dos meus pais e dos pais dos meus pais escrita nele. Amo-o sobre todos os outros, mais do que o dos meus filhos, acima do de qualquer homem. E, sem sentimento de culpa, debruço-me nele como Narciso, não porque o julgue superiormente belo, mas porque o quero superiormente digno. 

12.12.23

Na hora do almoço, ouço-as gabar a habilidade dos maridos para grelhados, vinhos e café, por tradição os pelouros ocupados pelos homens que ajudam lá em casa. Não sei se tenho mais pena delas, por de tão pouco se orgulharem, ou deles, assim publicamente diminuídos. Desgostar-me-ia muito se um dia alguém assim falasse dos meus filhos, como macaquinhos de zoológico que, ao cabo de décadas de esforço, treino e desmemoriação de maus hábitos, ganhassem palminhas, medalha ao peito e o olho gordo das outras senhoras casadas. Para efeitos de declaração pública de amor, conto que lhes exaltem o conhecimento, a lealdade, a ternura, a coragem moral. Não quero que os valorizem tanto por tão pouco que eles deem.

27.11.23

Ao cabo de tanto tempo a marear na sua pele, desinteressada do destino e do dia seguinte, feliz com o acordo mútuo de economia sentimental, aliviada de o ver partir depois do êxtase e de uma história, dei comigo a desejar de coração o homem cínico e pensei: estou perdida. Tenho a certeza, foi a ternura dele que me rasteirou. 

14.11.23

É só na hora da confissão que a mentira se torna uma indecência. Antes disso, é inconsequente e amoral. Acredito nisso quando ouço o sermão de Lígia, a mais velha das manas Pereira, ao sair de casa com a sua menina exemplar:
– Se me voltas a mentir, tiro-te tudo, ouviste? Tiro-te tudo! 
Vê-me e sorri muito, a compor-se da vergonha de ter sido apanhada nos bastidores da sua representação quotidiana, sem o retoque da maquilhagem, o figurino da elegância e da sensatez, o devido ensaio de boas maneiras. Que terá feito a menina que justifique ameaça de pena tão pesada? Escondeu uma má nota, gastou o dinheiro das fotocópias no quiosque das gomas, passou a tarde na ramboia a pretexto de um trabalho de grupo? Com a adolescência a rebentar em todos os poros da face, a menina revira os olhos e desacelera, ganha distância da mãe. Sabe que tudo teria continuado na paz dos anjos, sem mortos, feridos ou percalços, se a verdade, seja qual for, não tivesse vazado. Por acaso cometeu algum crime, fez mal a alguém? 
– Não, mas não te admito que me mintas. Não te admito.
E perante a desproporção daquela justiça materna, em que mais pesa o orgulho do que o ensinamento, a menina anuncia: para a próxima mentirá com mais cautela e inteligência. 
– Veremos, minha menina, veremos.
Não. Obviamente, não verá. 

9.11.23

A professora que vive com três gatos pretos e um ror de tralha acumulada divaga no pão quente sobre a turbulência política e aproveita para fazer saber que está de baixa. Os nervos sucumbiram, já não há medicação que dê sentido a esta vida e o médico deixou claro que só voltará a pôr os pés numa sala de aula quando recuperar a força anímica. Mas enquanto puder fugirá desse dia como o diabo da cruz, nem que tenha de falsificar lágrimas e reinventar as suas dores. Cada hora com aqueles demónios é um calvário, falta-lhes tudo, intelecto, interesse, boas maneiras, safa-se um ou outro de espírito mais vivo e curioso mas até esses, com o tempo, acabam arrastados pela maioria. Por culpa da escola, todas as noites – todas, todas, não garante porque é preciso descontar as que não dorme – cai na trama de pesadelos que prefere nem contar e quando acorda dói-lhe tudo, as pernas desobedecem, a garganta fecha-se, a visão turva-se, os dedos das mãos incham.
– Então e os dias com o rapaz em Barcelona, princesa?
Uma canseira, ele a querer mostrar todas as magnificências da capital catalã e à professora só apetecia o aconchego de um sofá, o entendimento de um livro de poesia, uma água fresca com limão, a ternura fácil dos seus gatos pretos. 
– Dá Deus nozes, princesa...
Quais nozes, qual quê, aquilo parece uma feira popular, carreiros de gente, empurrões, escarcéu, toda a gente olha para tudo e ninguém vê nada, não há silêncio que favoreça a contemplação, o mundo muito desarrumado pelas ruas e aos solavancos nos monumentos, tantas raças, línguas e cores, um compra e vende em cada esquina, talvez exagere mas foi assim que as coisas lhe pareceram. E o rapaz sempre a puxar por ela. Custa aos filhos compreender que as mães se esgotam nos primeiros vinte anos de vida deles, que depois disso a folia e a aventura já não seduzem? Que interesse há em andar para lá e para cá, ir para dizer que foi, ver para dizer que viu? Chegando ao fim, voltando a casa, que diferença fez? 
– Então, princesa? Alargou horizontes, sei lá...
E que diferença fez, repete, que diferença fez? Pegue-se num livro de poesia, vá, num bom livro de poesia. Não tem mais e melhor efeito? A funcionária do pão quente perde argumento e palavra. De poesia não pode falar, nunca lhe deu para ler e mal teria tempo para isso, mas se houvesse dinheiro, era certinho que viajava todos os continentes.
– Tem de se dar mais à felicidade, princesa.
As coisas não são assim simples, mulher. Fala da felicidade como se fosse um vento que se apanha ou um traje de lantejoulas que se veste de manhã e dispõe logo a bailar com o mundo o dia inteiro. Que aberração! É direito de qualquer um ser infeliz em paz e sossego, ter um canto da casa mal iluminado e com pó de muitos anos ou uma dor de estimação para alimentar todos os dias. Até de uma princesa. 

8.11.23

– À mulher de Penedono, faz-lhe falta ter um dono.
O senhor Pereira acabou de descobrir o poder das rimas e contenta-se de ter arranjado maneira de dizer as suas verdades provocando mais riso do que indignação. Diz que agora lhes chegam as ideias de repente, às vezes enquanto lê o jornal ou toma banho, e pede à mulher que as vá anotando num caderninho, até porque está a pensar usá-las para animar a família na consoada. Não bastassem à senhora os deveres da governação doméstica, acrescem agora os de secretariar o poeta recém-nascido e coletar os seus delírios.
– Com todo o respeito e não se ofenda a menina, mas esta de Penedono também dá para si, não dá?
– Por acaso, não. Já lhe disse que a minha terra é a norte, na margem direita do Douro.
O senhor Pereira estranha que me rale mais o lapso geográfico do que a estocada machista, mas creio que estando além das minhas possibilidades desenferrujar toda a estrutura de valores em que, sem brecha de humildade, o septuagenário assenta, posso ao menos fazer donativos à sua pobrezinha cultura geral. 
– Não me leve a mal, mas a menina é um bocado picuinhas. Aquilo é tudo mais ou menos por ali.
Insiste em fazer do país interior uma amálgama, um ali ou além ou acolá que aos seus olhos diminutos não diverge no atraso social, cultural e mental. Transmontanos, beirões, alentejanos, vai dar tudo no mesmo, safam-se talvez os minhotos porque favorecidos pelos ventos do dinamismo galego ou a menina não se lembra de quando íamos todos às compras a Vigo, que cá não havia nada de jeito? 
Todos não, senhor Pereira. Com o carimbo da minha boa memória certifico que em romarias do consumo nunca os meus pais embarcaram e muito menos arrastaram a infância dos filhos para tais devoções. Noto que se abespinha com a ideia de que eu possa estar a reduzi-lo a um vulgar deslumbrado, mas, enfim, às vezes os dias não correm de feição e se os houve em que eu saí diminuída pelas suas imbecilidades, outros tem de haver em que o troco seja dado.
Porém, este homem para derrotas não foi talhado, muito menos perante uma mulher, pois então é muito mais do que a razão que está em jogo – é a dignidade. E o trunfo, como habitualmente, bate-o na mesa mesmo antes de me virar costas.
– Olhe, fica já aqui o compromisso. Na semana que vem, a menina vai ter uma rima só para si.

31.10.23

Homem, não enterres a tua dignidade levando a julgamento público a mente de uma mulher, seja em graçola de tasco, em desabafo de amigos ou em música premiada. Quando acusas o pensamento feminino de incerto, complexo, indecifrável, confessas, sem dares por ela, que és pouco em entendimento e em razão. Se, por outro lado, supões que fazes justiça alguma apresentando-o similar ao das heroínas, das deusas e de outras almas superiores, ou és filho protegido ou poeta fracassado.
Sobre o que te é trabalhoso amar desculpa-te com a tua insuficiência, não inventes o nosso excesso.

24.10.23

Lá vão elas, com os seios caídos de tanta fartura e fadiga, os ventres servis, os tornozelos grossos de chutar os dias avante, o frenético bamboleio das coxas para atender às crias e todo um alfabeto sentimental nos vincos da testa. Andam para lá e para cá, sobem e descem na bancada, perguntam aos seus homens se depois é para passar na churrasqueira ou se lhes basta o jantar requentado da véspera, de caminho amaldiçoam os árbitros, desejam o pão que o diabo amassou aos adversários, gritam aos filhos que são os maiores, que são invencíveis, que basta acreditarem e tudo, absolutamente tudo alcançam. Que embusteiras, estas mães! Ouvindo-as, convenço-me de que a mentira é a condição do amor. Varrem do caminho todas as reais impossibilidades, afastam os pedregulhos do desalento e da injustiça, fingem que só da vontade depende o êxito da marcha, para que os seus amados filhos avancem seguros de conquistar o mundo. Afinal, o amor pode não ser só o sacrifício da paz e da razão, mas também o da verdade. 

21.10.23

Não podemos todos falar apenas de sangue e morte, ter assento na bancada dos jurados, ser porta-estandartes, carrascos, domadores de feras, cuspidores de fogo, não podemos todos assinar por baixo das moções, das petições e das veementes condenações. Não podemos todos atiçar as raivas, reclamar aos deuses, acudir às causas, maldizer os destroços das consequências. Não podemos todos avançar para a frente de combate e atirar pedras, tinta e provocações. Não podemos todos ter tanta pressa em apresentar publicamente o certificado de moralidade e justiça. Ter a primeira e a última palavra. Entre nós, tem de sobrar quem confie e espere, quem cuide das coisas primordiais, quem regue os campos semeados, quem saiba interpretar os sonhos. Tem de haver quem continue a beijar-se sob um guarda-chuva transparente pintalgado de vermelho como se fosse ainda o primeiro dia da criação do mundo. 

20.10.23

Sob a ampla abóbada de um guarda-chuva transparente de pintas rubras, a viúva e o homem de bigode com o charme desusado dos anos oitenta colhem as delícias da sua intimidade amorosa. Enquanto ela fala, ele abre caminho por entre a cabeleira negra, explora-lhe pescoço, sussurra-lhe ao ouvido, depois morde-a e cala-a atirando-se aos seus lábios com furor. "Mas olhe, ouça, Artur...", tenta ainda a viúva antes da entrega. À vista de quem passa e com a bênção particular daquele céu estrelado a vermelho, recordam como o enamoramento é fundamentalmente um vício de boca – a língua muito viva, o verbo sempre urgente.

15.10.23

Mais logo cantam-se os parabéns pelo sexto aniversário de Alicita. À euforia da menina, que vive no resguardo das ilusões da infância, opõe-se o amargor da avó, triste de ver que a descendência não realizará os sonhos a que depois da viuvez se agarrou com unhas, dentes e orações. 
– Esta vai ser pior c'á mãe, já nasceu com o fogo no rabo. 
Tenho para mim que não é intenção fazer piada com a desgraça que envergonhou Portugal no dia exato em que a neta veio ao mundo. E às velhas também passa despercebida a coincidência da metáfora. Só o Marco do ginásio, que faz revista às manchetes antes de decidir o que leva:
– Ó dona Fátima, esse trocadilho era escusado. Morreu tanta gente...
Parece outro, este rapaz. Longe vai o tempo em que se abeirava com as cautelas de um gatinho doméstico, as velhas derretiam-se e por isso empurravam-no para que caísse nas boas graças da rapariga da papelaria. Bom dia, boa tarde, se faz favor, obrigado, gosto em vê-la, continuação, tudo à hora certa de ser dito, tão educadinho e trabalhador, sem vícios nem distrações. À época, jamais ele contestaria as palavras ouvidas fosse a quem fosse e muito menos desafiaria os humores difíceis da mãe da rapariga da papelaria, que havia de ser sua sogra caso o destino urdisse com alguma inteligência. Mal ou bem, Gabi espevitou-o. À custa dela, da sua entrega abnegada, da sua devoção, do hábito de se agarrar a ele e o lambuzar em público até lhe tirar de uma vez por todas o pudor, Marco tem agora um ego mais à medida dos ombros e, por consequência, porta-se com a desenvoltura que tem nos bíceps. 
Porém, à mãe da rapariga da papelaria pouco importa o que aconteceu há seis anos. Mortos? que deus os tenha, nada a fazer, e os vivos com ou sem ajuda hão de ter já ultrapassado as perdas. Importa-lhe a sua desgraça particular, a filha convertida em amásia, a netinha bastarda e insolente. É verdade que esteve quase, quase a perdoá-las. Houve alturas em que se ligaram as três profunda e amorosamente, parecia nascer ali uma cumplicidade cuja argamassa homem nenhum voltaria a corroer. Mas a reincidência da leviandade e os espetáculos constantemente proporcionados à vizinhança da papelaria reacenderam os rancores no seu coração.
– Dona Fatinha, a gente não pode andar sempre às turras com aqueles a quem tem amor. E deixe lá o que os outros pensam, quem está de fora não racha lenha.
– Eu amor tenho-lhes, dona Rute. Mas elas, se mo tivessem na mesma medida, não me envergonhavam assim.
Com ou sem vergonhas, fecha-se hoje a papelaria mais cedo para comemorar. Alicita terá um bolo de unicórnios, a mãe não poupará nos mimos, nos enfeites e nos presentes. E até a avó, quando se achar entre quatro paredes e despir o traje da sua altivez dorida, acabará a cobrir a menina de beijos, dar-lhe-á uma nota para o mealheiro e uma das suas joias, para ela usar um dia, quando for mulherzinha e tiver juízo. 

10.10.23

Na rua larga que corta pelo meio o bairro social, um automóvel branco inverte a marcha de repente, viola o traço contínuo e encurrala o autocarro. Não é um assalto. É um nobre cavaleiro deste século a garantir que a sua amada, vinda a correr em atraso e aflição, não perde o transporte público. Que bela manhã.

3.10.23

Olha a falta que me fazes nestes dias. 
É outubro, o vento devia estar a despir os braços das árvores, a estender nas calçadas os tapetes românticos do outono, a espalhar aromas de mosto e lenha queimada. Mas o tempo é estagnado, tenho a impressão de não avançarem as estações, os dias, as horas. Hoje é igual a ontem, as notícias repetem-se, os ladrões voltam ao local do crime, a terra treme com assiduidade, a fome grassa nas latitudes de sempre, o medo agita os leitos à volta do mundo, os injustiçados rebelam-se contra os abusos e a ignorância em que as civilizações reincidem. Ou poderá ser de outra forma e eu, adormecida, não reparo. O trânsito desta cidade adoece-me. Chego a casa gasta do vaivém, como um pano de limpar, mas continuo a ir e a vir, dou as minhas horas, as minhas melhores horas, as horas de inspiração, energia e clarividência, dou-as à troca de pão para a boca, esquecendo como é magnífico o poente porque quando ele acontece estou morta dentro de um carro, numa fila cujo fim não vejo, rumo a um destino que, afinal, é só pernoita.
A falta que me fazes é a falta de consciência. Preciso que me contes as tuas histórias para eu despertar, não deixes que me embalem, ajuda-me a manter os olhos abertos, puxa-me para a margem e mostra-me a realidade, de fora e de longe, quero ser lúcida até ao dia da minha morte. Às vezes cruzo a perna, pouso o cotovelo na mesa, a cabeça na palma da mão, fico a ver o que não está à vista, qualquer coisa de que me lembre, outra que só esboce, várias que resultem de cisma ou alucinação, talvez quem olha julgue que estudo miudezas – os veios do soalho, a rosácea de um puxador, uma franja do tapete. E exatamente nessa forma de abandono, na curva preguiçosa das costas, no ângulo envelhecido dessa introspeção, que não quero importunada nem pela voz dos meus filhos, reconheço a tua herança.

28.9.23

Enquanto Alicita me relata os primeiros dias na escola dos crescidos, a rapariga da papelaria dedilha no telemóvel com um empenho amoroso e a face toda iluminada. Do outro lado do ecrã está certamente o homem maduro, pois que mais nada além de um romance novo – e com o bónus de ser proibido – deixa as feições naquela suspensão extática. A espaços, a menina lança-lhe apelos, pede validações, precisa de ajuda para responder com rigor às perguntas que lhe faço. 
– A minha 'fessora chama-se Eugénia, não é, mãe? Mããããe...
A rapariga confirma sem levantar os olhos do ecrã, é isso, minha florzinha, investe novamente a dedilhar, vai sorrindo com um ar de quem lembra travessuras de infância e tem ganas de as repetir. O enamoramento tem sempre a mesma expressão, das feiras de subúrbio aos salões de chá da marginal revela-se com os mesmos verbos, o mesmo traje, a mesma embriaguez, o mesmo caráter ardiloso. 
Alicita está grande. Há muito que o colo da mãe deixou de lhe servir, mandou às urtigas a austeridade da avó e, com as velhas, ela tem a arte de namoriscar docemente, de modo a que se se aliem a ela. São difíceis as guerras que se travam na vizinhança, o que a vida dá de prémio ou castigo ali se experimenta e aprende a cada dia e Alicita vai-se preparando para a conquista do mundo entre o balcão da papelaria e a porta de casa, ensaiando alianças, provando limites, subjugando à sua a vontade dos outros. É fácil de ver que supera a mãe em astúcia e perspicácia, dificilmente se deixará manobrar por mãos alheias, muito menos cairá no engodo de promessas cor-de-rosa.
– Menina mais linda. Dás-me um beijinho, que eu logo trago-te um saquinho de gomas?
Assim nos interrompe a cabeleireira, de passagem para o seu posto de trabalho. Alicita recua sem disfarçar a dúvida sobre a pertinência daquele negócio. 
– Não gosto.
A rapariga da papelaria desperta. Num gesto brusco arruma o telemóvel no bolso traseiro das calças e assenta os pés na terra com estrondo, nem reparando como se assemelha à própria mãe:
– Isso são modos de responder, menina? Quer ficar de castigo?
– Eu é que sei se gosto ou não gosto!
E a menina lá se deixaria intimidar pelo tom de voz da rapariga da papelaria? Inúteis são as ameaças, os gritos e outros esboços trapalhões de autoridade. Qualquer criança reconhece uma mãe débil e insegura e, ainda que possa temê-la e submeter os hábitos à sua disciplina, jamais confiará nela o suficiente para seguir os seus conselhos e muito menos os exemplos. A cabeleireira apressa-se a distrair mãe e filha do litígio e a remendar o mal, oferecendo então chocolates já que as gomas não agradam. Na volta da escola a menina que passe lá no salão a buscar, até às oito as portas estão abertas. Mas Alicita fecha a cara, cruza os bracinhos, ganha distância e pose de uma princesa de gelo.
– Não. Eu não gosto é de beijos.
Ignoro em que equívoco, precipitação ou palavra mal dita possa ter descambado entretanto a troca de mensagens entre a rapariga da papelaria e o homem maduro. Mas alguma coisa a endemoninhou porque, ouvindo a sua menina responder assim, assentou-lhe cinco dedos na cara. Apanhada de surpresa, a menina arregalou os olhos, ruborizou mas não se lhe ouviu lamento algum. O troco, deu-o em voz baixa, firme em cada sílaba: burra! burrinha!
E é assim, numa manhã fresca de setembro, quando o calendário promete renovação, quando se sobem degraus, se anunciam mudanças, se retomam contactos e a natureza se dispõe a acolher outro ciclo, é assim que vemos como, apesar de tudo, nos filhos se perpetuam os erros dos seus pais. 

21.9.23

Mariana casou esta noite com um vestido rodado de inspiração campestre, em linho branco e bordados azuis no peito e nos punhos. Quando apareceu para a cerimónia, saltei-lhe para o colo, ela segurou-me e largou a rir, não sei se dos nervos se do gosto de nos reencontrarmos. Desejei-lhe felicidades e pedi desculpa pela minha arrogância, que não me levasse a mal pois se às vezes falo de cima e de longe não é senão para impor respeito às minhas próprias debilidades. Contava que ela fizesse o mesmo, que singelamente dissesse oh, qual quê, eu também sou uma arrogante de primeira, perdoa-me tu também. Então comover-nos-íamos juntas e nesse instante mágico nos tornaríamos amigas até ao fim dos tempos, contra provas, provações e intempéries, pois agora unidas pelo mesmo vício de caráter. Mas Mariana não foi outra que não ela. Como se visse em mim uma criatura esfaimada de afeto ou alguém a merecer condescendência, passou-me a mão nos cabelos e tudo bem, deixa lá, já passou.
Acordei sem lhe ter esmurrado a face, sem lhe ter rasgado o vestido, sem lhe ter revelado o que nas costas dela me disse o homem que a esperava no altar. Estou a tornar-me cada vez mais pacífica quando sonho. Nota positiva para a índole da minha subconsciência.

19.9.23

É de louvar o civismo com que nos toleramos uns aos outros no quotidiano – descontemos as crianças e os doidos. Nós, gente que por imperativo de sobrevivência toma o seu papel na manutenção da ordem, com quanta arte dominamos o fervor da nossa humanidade! As sombras, as raivas, o amargo de certas memórias, o gosto ferroso dos sonhos abortados, os compromissos vagos e sem grande propósito, as vitórias esquecidas assim que celebradas, o corpo que carregamos com os fermentos silenciosos da morte e sob a autoridade das coisas primordiais – fome, sede, sexo –, os receios, as mutilações, as contas de subtrair, a ideia de que o outro, sempre o outro, é autista e estrangeiro, toda esta inflamação sentimental que a cada noite se excede, a luz do dia vem generosamente aliviar. E mal nos olhamos ao espelho, com mais ou menos consideração por quem nos tornamos, escolhemos sair de casa com bons modos – amiúde menos bons mas nunca tão maus quanto em verdade nos sabemos capazes – para entrar nas filas, cumprir as tarefas, fazer os cálculos, pôr os vistos, pagar as taxas, dar as esmolas. Às vezes entredentes uma praga, um insulto, uma ameaça, mas não é nada, logo passa, ora essa, vamos andando, desculpe lá, isto resolve-se, temos de ser uns para os outros, não tem importância, a vida passa a correr.  

18.9.23

Lamento por todas as mulheres que sonharam – e mereciam – homens de espírito elevado e acabaram a contentar-se com os bem educados e trabalhadores. É uma forma de fracasso como outra qualquer mas que, felizmente, ninguém nota. 

12.9.23

O senhor Pereira maldiz a mãe do neto Joaquim que, num assomo de calor e cansaço, desbastou toda a sua cabeleira de fogo e apareceu com um ar andrógino. Levanta-se no espírito do patriarca a suspeita de que a imperatriz possa estar a aderir a essas modas de mudar de sexo, ou de género, ou de genitais, ou de gostos, ou seja lá o que isso for, com todo o respeito, menina. É claro que se trata apenas de um corte de cabelo, uma inocência, uma singeleza, um ato mais ou menos rotineiro, sem narrativa ou entrelinhas, mas cada um atribui às simplicidades da vida alheia o peso dos seus próprios fantasmas. Não fica nada bem às mulheres quererem imitar os homens, não acha a menina? Pergunto-me se o senhor Pereira diz isto a recordar a lendária tareia que a própria mãe terá dado ao marido e concedo: imitar os homens não é, jamais foi, boa ideia. 
Por outro lado:
– O meu filho tem muita sensibilidade. O que esta rapariga lhe fez não se faz a ninguém. 
Conta a mulher do senhor Pereira que o seu benjamim sofre de muitas partes do corpo com pruridos, moinhas, tremores e outros desconfortos vários sem diagnóstico, e que a sofrença se agrava quando a imperatriz vem de visita com o menino. Do estrago que ela fez à alma do coitado talvez ainda por muitos anos ele padeça e por isso é um rapaz mole e indiferente, a quem é preciso ir dando uma mãozinha aqui, um conselhozinho acolá, de modo a evitar que tornem a abusar da sua bondade. Não lhe bastasse a tirania das irmãs, que passaram a infância e a adolescência a jogar com ele como se fora um boneco, ainda foi sucumbir ao feitiço de uma ruiva da parvónia que levanta o queixo muito acima das suas possibilidades. Pensa que é superior aos outros, atira a mulher do senhor Pereira, sem notar que ao julgarmos alguém por se supor mais do que é, não estamos senão a supor-nos mais do que somos.
Dois dias depois da conversa, vejo a imperatriz a seguir devagar com Joaquim pela mão. Como é hábito, vai a cantar-lhe canções que a generalidade das mamãs, por subestimar o intelecto das suas crias, consideraria impróprias: when she was young she was a cow and all day long she milked the stars, she taught me women to survive must be unfaithful to their child. Nada perdeu em classe, nem teria esta mulher como perder o que por natureza e vocação lhe pertence e está para além de todas as coisas que use ou desuse. Com ou sem a cabeleira de fogo, é francamente bela e esperta o bastante para dominar os Pereira. Continuem a portar-se como cães mansos e pouco importará o que rosnam mal ela vira costas. Que causas, vontades, delírios ou transações a terão harmonizado com o Pereirinha ao ponto de conceberem um filho – eis o maior mistério da vizinhança deste blog. Mas qual de nós, na certeza de que jamais se distraiu a comer do que não presta, vai atirar a primeira pedra?

11.9.23

Desperto, por coisa nenhuma, àquela hora da noite obscura e surreal em que as más decisões são tomadas e em que cada rumor levanta a suspeita de uma tragédia. Num ápice, suponho desacatos, acidentes, crimes que à luz do dia, bem sei, se tornarão risíveis. Como são grandiosos os favores que o medo presta à imaginação! E esta, por sua vez, devolve em dobro, enredando-se ambos numa das mais cúmplices e frutuosas ligações que a mente humana apadrinha.

3.9.23

Que ternura benfazeja, que sopro de esperança, que alívio de alma este mês de agosto. Por tão pouco esperar dele, atribui-lhe os direitos e deveres de um quotidiano vulgar e fui andando. Porém, em tudo agosto se superou. Entrei nele a arrastar-me com preguiça e má vontade e cumpri-o, afinal, como uma bailarina de trapézio.

28.8.23

Ao cabo de algumas semanas de excessos, volto à clausura do mosteiro para rever certas lições que, por teimosia ou genética, jamais aprendo. Retiro-me sem fotogenia, sem momentos instagramáveis, sem cenários de padrões étnicos, filtros de sonhos ou árvores da vida. Aqui o abrigo é pedra, os dias são de nudez e austeridade, silenciosos e por vezes até obscuros. Mas é certo que posso pasmar sobre uma parede mofada com a mesma satisfação com que outros o fazem sobre o dourado líquido de um poente e enquanto esses são animados pela ideia de que todas as coisas são possíveis no infinito universo, eu aceito que todas as coisas são inevitáveis na finitude que sou. Não busco clichés sobre a felicidade, o amor-próprio e outras boas intenções de que o inferno das bocas alheias já está cheio. Ambiciono coisas maiores: decifrar enigmas, investigar a verdade, levantar as proibições que os deuses fazem aos humanos. Mas mal me sento a meditar diante da face iluminada de Buda e dos seus olhos repousados, sem sermão, doutrina, castigo ou fantasia, fico refém da lembrança dos meus apetites mundanos: waffles com chocolate quente, dois tragos de hidromel, as mãos competentes do homem cínico, escrever com propriedade sobre coisas que, em bom rigor, ignoro.

24.8.23

Esta cidade deixou de pertencer aos que têm o seu sangue. Nas ruas do centro, já poucos falam a minha língua ou cobram o que eu posso pagar. A realidade pura e simples deixou de bastar como experiência, é preciso um conceito, um simulacro, um rótulo, uma recriação, um ambiente. A cultura fez-se carnaval quotidiano, mais nobre no argumento do que no bem que deixa. O Porto do Carlos Tê desapareceu, cansou-se de moer sentimentos no seu jeito fechado e vendeu o corpo e a alma, abandonando os próprios filhos na sarjeta.  

18.8.23

Minha Nossa Senhora Daqui e Dacolá, que varres as angústias para as margens do verão e trazes à luz os santos que dormem na sombra fresca das igrejas e vestes as crianças como os anjos que jamais hão de ser e és levada em ombros e espalhas cheiro de farturas e misérias, vê bem que os homens compraram agosto inteiro só para ti, então faz o jeito e, ao passares na minha terra, à porta da minha casa, na face negra da minha alma, pousa a tua mão, em cujos milagres descreio, pousa-ma nas feridas, benze-me a carne viva, estanca-me o sangue, faz também a mim o que fazes aos outros, põe-me a girar nos carrosséis das rotundas, tira-me o tino, o fôlego e a memória da véspera, enche-me a barriga de gorduras queimadas e vinhos baratos, suja-me desse pó que se levanta nas pracetas onde os homens se embriagam e as velhas dançam como se chamassem o diabo e as crianças confiam em quem não devem e o tempo futuro dos verbos nunca se aprende em condições. 

11.8.23

Dentro de um par de dias, a professora que vive com três gatos pretos e um ror de tralha acumulada embarcará para Barcelona, a visitar o rapaz. Um aborrecimento, com esta caloraça e os aeroportos à pinha, mas o que é que uma mãe não faz por um filho? pergunta e, num suspiro, espalha ao redor o açúcar do pastel que abocanhou com mais ganas do que dentes, ou não fosse a gula, entre todos os prazeres que nos condenam aos infernos, o mais desajeitado. Contudo, a verdade é outra. Pudesse esquivar-se e repetiria mais um agosto na clausura, trasladando as pilhas de livros entre o quarto e a sala, tropeçando na impaciência dos gatos, mastigando a saudade de um corpo presente, não para amar, que disso já não se acha merecedora, mas para aquele consolo instantâneo que o êxtase oferece e que só comove quando acontece nos braços do outro. Está-se bem é em casa, na companhia de uma dor tão velha que já nem prega sustos nem pede contas. Mas como se desculparia ao rapaz, há mais de cinco anos a pedir a visita da mãe? E o que diria a esses, por tudo e por nada deslumbrados, que veem a sorte grande numa casa à disposição para lá da fronteira?
– Ai, sotôra, quem me dera embarcar eu, fosse pr'onde fosse, e tão cedo ninguém me punha as vistinhas em cima.
Diz a cabeleireira. O riso dela troa como o das bruxas, engasga-se com o fumo do cigarro e Gabi prontamente acode, sovando-a entre as escápulas. Talvez aproveite para fazer justiça à sua condição de assalariada, toma lá esta por todas as horas além da hora, esta pela esmolinha ao fim do mês, esta pelo subsídio de férias que só vem depois de as gozar, esta pelas tostas mistas almoçadas no gabinete da fotodepilação para não fazer esperar as doutoras. 
– Se é de fugir que tem vontade, o melhor é falar com um especialista, pode estar a precisar de tomar alguma coisa. 
Assim aconselha a professora que vive com três gatos pretos e um ror de tralha acumulada, ou, melhor dizendo, assim fala o roto ao nu e dele se apieda. Coitada da professora. A morte avança para ela a passos largos. Não a morte definitiva, material e misericordiosa, que poupa a alma ao pavor da eternidade e à insuportável carga da sabedoria, que termina coroada de epitáfios e a encher de culpas o coração dos vivos. Antes a morte que obriga a manter os olhos abertos e arranca o corpo à cama todos os dias e o faz tombar de novo a cada noite sem lhe ter autorizado uma única esperança, uma única carícia.

14.7.23

Qualquer história tem tantas versões quantos os seus personagens e tantas perspetivas quantos os lugares de cenário. Assim se compreende, e quiçá se desculpa, que entre todos os intervenientes desta trapalhada amorosa ninguém assuma faltas ou fraquezas. Pergunte-se à mãe da rapariga da papelaria e ela jamais considerará a sua parte de responsabilidade no coração fantasioso da filha. Deu-lhe do bom e do melhor, fê-la mulher, aturou-lhe fraldas sujas, noites más, caprichos, metamorfoses, desvarios, vergonhas que toda a gente já sabe. Agora, expressa-se com a teatralidade própria das mães orgulhosamente feridas, mas onde é que eu errei, onde é que eu errei?, à espera, não de um indulto, mas da coroação pública dos seus esforços. Cheias de pena, as velhas mordem o isco: qual erro, qual quê, dona Fatinha! educou-a com tanto esmero, todas fomos testemunhas, mas os azares acontecem, é o que é. E Alicita, terá culpas? A inocência, só por sê-lo, merece absolvição sem reservas? O peso que um filho faz às costas da sua mãe não é um empurrão para certas saídas de emergência? Não é certo que, por vezes, só uma leviandade remedeia as dores, o cansaço, o medo, o custo de amar incondicionalmente? 
Do homem maduro não se conhece versão, argumento ou desculpa, mas pela boca da rapariga da papelaria as velhas ficaram a saber que tudo se encaminha para um desses finais em que pode dizer-se que o amor tudo vence, até a depressão crónica da mulher dele, razão pela qual o divórcio se desaconselha agora. As coisas estão a resolver-se, ele só precisa de tempo. 
Se a rapariga da papelaria tivesse os dois pés firmes na realidade em vez de com eles bailar em contos de fadas, saberia que há no argumento dele menos generosidade do que se pode supor. A tantas outras mais ou menos tontas do que ela já se ouviu contar esta historieta e o desenlace nunca favoreceu senão o infiel. Casado há vinte e três anos, o homem maduro está subjugado ao tempo, que converte os laços em nós e os aperta até ao sufoco, e a um regime quotidiano de "tudo incluído" que seria insensato desperdiçar. E um homem subjugado é sempre, em potência, um traidor. Nas salas da governação, nas empresas, nos casamentos.
Mas que importância tem o que digo, se a rapariga da papelaria é toda ela um retrato de festa e esperança? O seu ego resistiu ao julgamento público, o que nas imediações da papelaria foi dito e maldito comichou mas não envenenou. Ela confia que vive finalmente uma história de amor intenso, dessas que reviram as vidas do avesso para, no final, depois de lágrimas e sangue, colocar tudo em lugar justo e definitivo. Deixemo-la. Aventurar-se é um direito seu e também a forma mais eficaz de castigar a mãe. 

27.5.23

Das coisas que por amor nos dispomos a fazer, já muitas histórias rezam e não há de ser esta a engrossar o rol. Parte delas são rasgos de heroicidade, fazem crer que a paixão alcança os impossíveis e por isso são aplaudidas, elevadas, versejadas, prolongando assim a doença do romantismo. Mas outras histórias há, menos felizes, que precipitam os seus protagonistas num vórtice de indignidades, orientadas por esse nobre valor a que se chama esperança e em nome do qual toda a sujeição se toma por legítima. Destas, infelizmente, se fala agora na papelaria pois o novo amor da rapariga, pleno de bons augúrios e abençoado pelas velhas, revelou-se, afinal, uma armadilha. Em armadilhas já todos caímos, é verdade, e quantas delas montadas em lençóis alvos, insuspeitos, sem vinco a apontar: Mas o caso da rapariga da papelaria agrava-se porque é tão grande nela o medo de morrer solteira e desconsiderada pelo mundo, que se entrega sem cheirar o perigo. Só num coração livre de medo pode funcionar a intuição. 
O caso conta-se em duas linhas e dá mais pena a banalidade que é do que a infelicidade que trouxe. O homem que vinha alegrando os dias dela, a pessoa madura, afinal é um marido enterrado até ao pescoço num lar de família. Desses que, por suspeitar de um desvario da mulher e por esta se encontrar ausente por mais tempo do que o razoável, correm logo a garantir-se entre outro par de pernas, não vá o diabo tecê-las e deixá-lo morrer de todas as fomes. Se para cada panela se diz haver no mundo um testo, certamente que para cada patife há pelo menos uma tontinha. E não é a rapariga da papelaria a mais perfeita?
Gabi festeja. Vê desconstruir-se diante dos olhos do Marco a imagem santificada da sua rival e esse é o melhor desfecho para a disputa que o seu coração –  também medroso e por isso imaginativo – inventou. Meter-se com um homem casado – ah, não me venham dizer que ela não sabia porque uma mulher sente, uma mulher sente! – é a prova de uma falsidade sem tamanho, é falta de tudo!, diz entredentes no vaivém da lima. Falta de decência, falta de respeito, falta de juízo, falta de esperteza, falta de caráter. No salão, ninguém trava a língua de Gabi. Quem resiste a um carrossel de maledicência? Só a dona Maria Isabel (há quanto tempo!): 
– Evite ser demasiado moralista, menina, que aumenta o risco de darmos consigo precisamente entre os imorais. 
– Não percebi.
No meio do desastre, só as velhas lembram que enquanto há ternura há esperança. 
– Dona Fatinha, a sua filha deve ter mau olhado. É a única explicação.
Comovi-me com o veredicto. Estas velhas, tantos anos de roda da papelaria, a raspar o sonho dos milhões que nunca saem e a ver aquela doce rapariga crescer, desgostar-se e dar à luz, como haviam de a ofender, tomar por estúpida ou colar o triste rótulo de amásia? Não, elas têm outro diagnóstico e assim mantêm intacta a inocência da sua menina, para quem o destino tem sido um burlão de primeira. Há muitas formas de ser generoso para com os erros dos outros. A cegueira de faz de conta pode não ser a mais certa, mas há horas em que é a única possível.
Dona Fatinha não abre a boca. Anda como um fantasma, perdeu o fio da meada dos dias, descuidou o cabelo, só aparece de tarde na papelaria. A filha precipitou-lhe a velhice, já só espera dela o golpe de misericórdia.

15.5.23

Concebido contra todos os planos e probabilidades, acidente fisiológico, fruto de uma urgência amorosa que a saudade empurrou até à insensatez  – o meu menino com cabelos de oiro velho e olhos de mar de inverno converteu-se na minha mais útil expressão de ternura. Sobre isso, porém, recuso que me sejam atribuídos méritos. Já nasceu assim, todo derretido com as coisas da vida, confiante, capaz como poucos do entendimento e do perdão. Porém, a passos largos no caminho de ser homem, acorda agora todos os dias como um estranho que acabasse de pousar na Terra. A cada manhã dou, portanto, à luz um novo ser e só desmemoriando as dores do parto da véspera posso retomar o laborioso fito da sua educação.
Com o rapaz voador a mudança foi mais lenta e misericordiosa. A cada dia um sinal, um passinho mais a longe, uma horinha mais tardia, mil cuidados para não sobressaltar este coração de mãe, que em resistência terá sempre mais fama do que proveito. Entretinha-se com pagode brasileiro e outras ligeirezas próprias da idade e assim me despistou, a fazer-me crer que se prolongava a sua inocência. Precisei de vários anos anos para notar que estava, afinal, todo cheio de ciência e filosofia e que as suas escápulas de atleta se haviam desdobrado num portentoso par de asas, capaz de o levar aonde eu nem em sonhos. Mas no menino com cabelos de oiro velho e olhos de mar de inverno dá-me a impressão que a natureza quis despachar o trabalho de uma assentada e arrancou-mo do colo entre dois sóis, sem respeito pelos meus sentimentos. Estranho muito nele o tamanho, a voz, as razões, os gostos, a seriedade, Sinatra, Elvis e Piaf na playlist
Tenho ainda de cor os seus medos de infante, trato por tu os monstros que dormiram debaixo da sua cama, quantas vezes a meio da noite não os arrastei pelos colarinhos porta fora? Gostaria muito de o poupar às dores que o futuro lhe reserva, às mínimas escoriações do quotidiano, ao punhal dos traidores, ao vácuo onde o desgosto amoroso mergulha as almas crédulas. Mas que posso eu contra o caos do mundo e a frágil condição da humanidade? Dia após dia, mortifico-me com o inventário das desgraças possíveis e imaginárias e revejo as lições que lhe passei nas entrelinhas do amor: saberá dizer não, saberá virar costas, terá pulso, terá fibra, terá força? Por vezes, admito, até peço aos deuses e a todas as suas imitações que o abençoem também com alguns dons de carrasco, porque nos romances de ecrã e de papel se conta que os puros de caráter vergam com grandes dores e sacrifícios e, embora os seus nomes sejam depois lembrados, benefício algum lhes é concedido.
Acalmem-se os que a esta hora já me supõem uma dessas mães que querem segurar os filhos como amantes prediletos a vida inteira. É o contrário. As asas que os meus têm, fui eu que lhas dei, desde cedo, e cuidei sempre para que em estrutura e amplitude sejam bastantes, de forma a que, comigo ou sem mim, eles possam aventurar-se até morrerem. Acontece, porém, que, embora o amor genuíno seja o que consente a liberdade do outro, cada passo de um filho para longe da sua mãe é sempre uma amputação a tratar com solenidade e ternura. E o contrário só dirão os ingénuos, os mentirosos, ou os coaches da vida plástica.

21.4.23

Quando se deita ao meu lado, o homem cínico conta-me histórias a preto e branco da sua infância rural, de como os invernos rangiam nos ossos dos velhos e os aguaceiros de estio arruinavam a fé dos veraneantes. Depois de sucumbir à morte por obra e graça dos meus venenos de fêmea, embrulha-me na robustez dos seus tentáculos e fala-me ao ouvido sem romance nem maquilhagem, a formulação tão exata que não possa ser desdita e os verbos conjugados no tempo presente do modo concreto, por saber que nem as coisas já idas nem outras que se podem sonhar são honestas como as ciências que explicam a atração dos corpos.

5.4.23

Não acredito que possamos vencer e ultrapassar o machismo dando importância, por mais do que um par de horas, às declarações de um sujeito de escassos recursos morais e emocionais. Acredito que a nós, mulheres, compete continuar a ser o que a nossa natureza e caráter mandam que sejamos, eliminando barreiras por uma força quotidiana e solidária, às vezes com barulho, mas outras também em silêncio e de forma igualmente assertiva e voraz. O nosso combate pela igualdade de todos os seres humanos é esse, é nas ruas, nos locais de trabalho, em casa, no sexo, nos pódios, na noite, na educação dos filhos nossos e das outras mães, no modo de andar de queixo levantado em qualquer corpo, em qualquer dia. E sempre que fizermos o que por bem entendermos fazer ou recusarmos o que entendemos certo recusar, abrimos o caminho. Não percamos esse foco. O senhor do Correio da Manhã é passado e mais rapidamente morrerá no passado quanto mais cedo reduzirmos o seu nome a pó: uma inconveniência que com um gesto vago e superior sacudiremos. Desde que o nosso combate continue, e seja firme, consequente e inteligente, ele e outros semelhantes estão condenados à extinção. E sendo bem feito esse trabalho, os netos que tivermos só saberão da sua existência pelos velhos manuais da escola, nos pontos vergonhosos da nossa timeline.

9.3.23

A rapariga da papelaria voltou a meter o coração em sarilhos e, desta vez, a coisa é tão feia que dificilmente a mãe suportará a vergonha. Não sou eu quem diz, é a gente, por aí, que supõe. E as suposições, quando não se calam como devem, lançam boatos e os boatos enredam histórias que, por sua vez, desembocam em juízos e os juízos, sendo humanos, ganham força de moral e a moral pode às vezes tornar-se a mais devastadora de todas as armas de guerra fria. Que o diga Gabi, a manicura sonsa, muito fraca a encobrir a satisfação de ter pontos ganhos sobre a rival: quem diria? aquela pose de santinha, toda tristonha, toda coitada, e olha...
Mas sobre o que ainda são só contos e ditos, por princípio não se fala neste blog. 

8.3.23

A minha mãe morreu torturada por um cancro que lhe cravou as garras na parte do corpo onde foi maior a generosidade dela – seis filhos dados à luz. Desde então, sondas e olhos clínicos vigiam o meu ventre com intervalos regulares e assim acredito poder antecipar-me ao monstro, caso ele pretenda fazer também em mim a sua toca. É nisto, e apenas nisto, que me custa ser mulher. Tenho privilégios. Sorte. Educação. Liberdade. Falo alto, onde e quando quero. A ninguém devo ou presto contas. Tenho fé nos meus filhos homens e no seu contributo para corrigir certas imperfeições do mundo. Mas sobrará sempre esta impressão de que a natureza ameaça o meu corpo de fêmea a toda a hora, que opera os meus recantos silenciosos, húmidos, fundos e arredondados para seu proveito e depois, quando não lhe servirem mais, cuspirá neles a sua peçonha.

28.2.23

A viúva, vi-a pela última vez numa noite de setembro, à despedida do verão, no terraço do restaurante italiano, acompanhada de um tipo de blazer e bigode com o charme desusado dos anos oitenta. Espartilhada num vestido curto de napa preta, com o nome da marca em metal dourado em cada uma das alças e uma echarpe vermelho-sangue pontuada de brilhos, a viúva mostra sempre dinheiro a mais e gosto a menos no despudor com que traja. O seu ego tira basto proveito da líbido desassossegada dos homens, do ruído maldizente das mulheres e das águas paradas nos leitos conjugais, mas nada da parte dela nos é devido por causa disso. Pelo contrário. O rasto de vibração felina que deixou, ao atravessar o terraço até à mesa reservada, foi um generoso empréstimo que salvou da bancarrota emocional alguns clientes, cansados já de atualizar o feed nas redes sociais enquanto o vinho não chegava à mesa. 
O tipo de blazer e bigode notou bem o poder da mulher que abria caminho à sua frente pois dele terá sido também uma vítima, ainda que lhe tenha tocado a sorte de poder mexer enquanto aos outros a toda a hora é lembrado que ver é com os olhinhos. Sentaram-se frente a frente, sob a ramada, junto ao estrado onde um rapazito de pouca barba tocava velhas canções italianas em versões frígidas e cheias de tiques modernos. Comeram risoto de qualquer coisa que à distância não vi, conversaram em sussurro, deram-se discretamente as mãos, até ao momento em que, pelos efeitos do vinho ou por artes do tipo de blazer e bigode, a viúva largou a rir, primeiro naquele modo disfarçado que usam as crianças transgressoras, depois em gargalhada livre.
– Cale-se, Artur! Pelo amor de Deus cale-se, que eu não aguento mais...
Então desfez-se ele a rir também. E enquanto ambos riam e quanto mais riam mais vontade de rir ganhavam, parecendo já que cada um ria de o outro tanto se rir, o rapazito de pouca barba cantava, nessa língua que tão bem embala os corações enamorados: io ti amo e chiedo perdonoricordi chi sono, ti amo, ti amo, ti amo, ti amo, ti amo.
Nessa noite tomei a decisão de ir a Itália.

27.2.23

A professora que vive com três gatos pretos e um ror de tralha acumulada fez desabar ontem uma pilha de cestos de rodinhas à porta do supermercado. Não vi como sucedeu, mas ouvi o estrondo e, por estar perto, acudi. Juntas, restaurámos a ordem, colocando novamente os cestos no lugar com grandes esforços para garantir o equilíbrio da torre, porque se eu sou miudinha e tenho pouca amplidão de braços, ela é obesa e mal pode com os dela. No tempo que durou a empreitada, a professora nunca me olhou e, assim que terminámos, deu-me as costas e foi embora com o andar lento, anestesiado, sem obrigada nem adeus, como uma tartaruga gigante que apenas buscasse um lugar para morrer. Antigamente, tomá-la-ia por mal-educada e isso havia de deixar-me febril de indignação, a desfiar mentalmente toda a sorte de palavrões que me aliviassem. Agora, sei que a professora que vive com três gatos pretos e um ror de tralha acumulada nem sequer me notou. A cismar nos seus cansaços quotidianos, na sua velha – e tão injusta – solidão, nas culpas que, não lhe pertencendo, acabaram por cair nas suas costas, ficou cega e surda. As dores, assim remoídas e trituradas, espalham à volta do seu corpo uma poeira fina que lhe desbota a imagem do mundo e a distancia dele. Viu-me como se eu nem ali estivesse e hoje, ao lembrar o episódio dos cestos tombados, talvez se convença de que foi um sonho. Isso dá mais medo do que toda a má educação que possa haver na vizinhança deste blog.

18.2.23

Que falta faz à vizinhança deste blog a imperatriz, toda vestida de coisas desengraçadas para não esmagar a beleza com que nasceu e jamais poderia forjar: caracóis em brasa, olhos de verde tropical, pele de leite morno, dentes muito quadradinhos, pernas quase sempre ao léu, às vezes nos pés uns chinelos de dedo, no colo Joaquim aninhado como no ventre. Mas agora Joaquim ameninou-se, desceu dos braços da mãe, anda firme pelo próprio pé ou na correria trôpega e acidentada dos aprendizes da vida e a imperatriz já só visita a casa dos Pereira uma vez por mês, eles que se façam também à estrada caso as saudades do menino apertem. Então, de há um ano para cá, as ruas envelheceram muito. Se não fosse o novo amor da rapariga da papelaria – até ver, livre de perigos – e os atrevimentos de Alicita – que a avó desespera por calar com receio que a menina cresça igual à mãe  – nesta vizinhança só vingariam a tristeza e a resignação. E até mesmo nestas belas manhãs de sábado, em que ninguém considera a iminência quotidiana da tragédia e por isso saímos de casa portando esse gene castrador a que se chama esperança, que aborta as revoluções e embala os corações da humanidade e amolece os seus punhos dentro dos bolsos, até nestas manhãs a gente cumprimenta-se a dizer vai-se andando, cansada de estranhar o mundo logo ao levantar da cama.

14.2.23

Sempre que meia dúzia de inteligentes se reúne a debater a falta de hábitos de leitura dos portugueses, tenho um sentimento de atração-repulsa  mais repulsa do que atração, admito, mas sucede que por vezes tenho tempos mortos, é tarde para umas coisas, ainda cedo para outras, e estes entretenimentos encaixam aí para me acordar o espírito e olear a indignação, que, como os ossos, emperra com a maturidade. Que insuportáveis se tornaram os evangelizadores! Não porque não seja nobre a sua causa mas porque é ignorante o seu discurso, já que desconhecem os sentimentos e a realidade daqueles sobre quem tanto debatem. Nunca vi que chamassem a explicar-se os que não leem. Autores, editores, professores, curadores, comunicadores, os mesmos de sempre monopolizam os palanques, apresentam os gráficos, as estatísticas, as análises e as soluções: tem de ser desde pequeno, tem de ser todos os dias, tem de ser à noite, tem de ser nas férias, tem de ser nas bibliotecas, têm de ser os pais, têm de ser os professores, tem de ser gratuito, tem de ser assim ou assado, como a bula de um medicamento cheio de ciência mas que nunca passa na garganta.
Ler é um ato trabalhoso, um investimento de tempo e de espírito, de onde a mente se distraí amiúde e por dá cá aquela palha e que, entre os espinhos e enguiços do quotidiano, custa manter. A roda-viva do mundo faz muito barulho, atordoa a mente, mói a alma, tapa as brechas com betão e entulho, respirar é difícil, quanto mais ler. Os que leem nas tardes de invernia, instagramavelmente aninhados no sofá com manta e chá, ou nas esplanadas do estio, com chapéu de abas largas e gin à mão, e supõem que essa seja a disponibilidade e a vocação de todos, o que sabem? E, de resto, quem ajuda? Professores nas escolas chatos e estreitos, críticos de literatura chatos e vendidos, escritores chatos e arrogantes, tertúlias e mesas redondas de feiras com disputas de pavões e filas de bajuladores, listas de livros lidos que a gente tem agora a mania de exibir para efeitos de aprovação social e até de acasalamento? Então às vezes a literatura nem parece um tesouro mas um circo gigante, espalhafatoso e com bilhetes demasiado caros para péssimos lugares. 

1.2.23

À hora do lanche, no pão quente, Gabi tem o corpo cheio de vontades todo debruçado sobre a indiferença do Marco do ginásio. Ele folheia o Notícias, sorri-lhe a espaços para a manter em lume brando e é de uma doçura vaga, ensaiada, a voz com que pergunta, sem a olhar: queres a fatia sem côdea? Fogem ambos à solidão como foge o diabo à cruz, inventando-se como amantes que não são. Ele obtém dela uma adulação fútil, sem tino nem consistência, e, sempre com um olho arredio, fixado na porta da papelaria, paga-lhe em míseras prestações de ternura que ela abocanha como um cão faminto. Embora não sejam sobre Gabi os pensamentos do Marco ao acordar, tampouco os que confia ao travesseiro, sempre vai tirando dela alguma compensação pelo trabalho que dedica ao esplendor do próprio físico. Podia ser qualquer outra, mas por acaso foi a manicura sonsa que se encantou com a sua musculatura e o seu desusado cavalheirismo e o acaso acaba por ser autor dos mais importantes acontecimentos das nossas vidas. Com efeito, Gabi resgatou-o à cómoda posição de sofredor beneficiário da simpatia das velhas, aplicou-lhe feitiços básicos e da noite para o dia lhe atiçou o sangue, fazendo funcionar a seu favor o que à outra parecia estar reservado. Não se amam, mas bastam-se. E porque não?

30.1.23

Se paro, penso, diz a cabeleireira quando comento a genica com que a vejo esfregar os azulejos da entrada do salão antes das oito e meia. Será engano meu, que o frio, embora aguce o espírito, às vezes entorpece os sentidos, mas ia jurar que os seus olhos desesperam para se manterem à tona de uma devastadora onda de água e sal. Alguma coisa lhe dói e eu concordo que a dor é como as crianças buliçosas, há que lhes dar que fazer para que não se ponham a mexer onde não devem. Para todas as dores se encontra uma ocupação que sirva de terapia e com urgência a procuramos por sabermos já de cor que o silêncio e a quietude engrossam a voz com que ela fala dentro das nossas cabeças. Escutá-la é tortura e dá medo imaginar que o tempo não garanta a sua diluição. Dar aos braços ou às pernas, seja a desencardir azulejos ou a pedalar por trilhos e matagais, com menos ou mais estilo temos a ilusão de a enxotar ainda que, em boa verdade, façamos pouco mais do que enterrá-la fundo no coração

19.1.23

Para não perturbar a santa paz que o nascimento do Menino inspira nos lares da Humanidade, Ana Isabel, a mais nova das manas Pereira, esperou que janeiro repousasse em névoa e melancolia para comunicar à família o fim do seu casamento. Até então, ninguém ousou corromper o espírito natalício, quanto mais não fosse porque a imperatriz, Joaquim e a avó beirã vieram para a consoada e era fundamental exibir-lhes as alegrias que perderam por se enraizarem nas encostas brumosas do fim do mundo. Mas depois, na ressaca do fígado e do cartão de crédito, arrumados os enfeites e apagados os brilhos, os Pereira tiveram de ouvir na própria casa o eco da palavra maldita – divórcio. 
Mas porquê, porquê, porquê, perguntaram, mais pela incredulidade do que pelo interesse nas verdadeiras razões da filha. Atiraram à cara de Ana Isabel todas as suas falhas de caráter, assumindo à partida que a ela cabia a culpa do desastre. Egoísta, preguiçosa, desde pequenina que amua e vira costas sempre que o gozo não paga o trabalho e as maçadas. Ora, é dos livros e dos sermões que a preguiça não sustenta casamentos. É ou não verdade que, ao assinar o contrato e desfiar as juras defronte do altar, Ana Isabel comprometera-se a levar até ao fim a empreitada, mesmo que o amor se esvaecesse ou de outras formas, menos excitantes, se travestisse? Assim lhe perguntou a mãe – por palavras diferentes destas – enquanto o senhor Pereira abanava a cabeça a reprovar o fracasso daquela filha do meio, de quem esperava mais virtude. Ana Isabel, muito necessitada de colo, explicou que há muito tempo ela e o marido invisível se deitavam calados, dormiam opostos e acordavam estranhos. Entretanto, a menina exemplar cresceu e deixou de valer como pretexto para adiar a decisão mais honesta, que os salvará aos três de amargurarem juntos ou cada um para seu lado no sofá dos psicoterapeutas. 
Lígia, a irmã mais velha, não se aliou a ela como seria de esperar. Tão unidas na maledicência, na intolerância para com os pais, no desdém pela imperatriz, na inveja de Joaquim, deixam agora exposta a fragilidade do seu laço, demonstrando como tantas vezes o que nos liga aos outros, mais do que o entendimento profundo, é a existência de inimigos comuns. São os fantasmas, não o afeto, que sustentam a lealdade entre os companheiros de trincheira. Então Ana Isabel não pôde sequer contar com a irmã, que engrossou a voz para a acusar de imaturidade e fazer-lhe ver que, no médio prazo, o prejuízo de descartar o marido invisível iria revelar-se muito maior do que à partida ela supunha. Para não falar da instabilidade a que vais sujeitar a tua filha, como é que consegues ser tão egoísta? 
O irmão demitiu-se de opinar e enquanto afrouxava no sofá, procurando desembaraçar-se, com suspiros múltiplos, das contrariedades do dia que findava, das dores lombares e da moinha nas têmporas, pontuou a discussão como soube: ela é que sabe da vida dela. E foi assim que, em estrita obediência à própria natureza, fiel à sua moleza de caráter, sem raciocínio, esforço, sacrifício ou hipocrisia, o filho caçula do senhor Pereira disse a primeira coisa válida que sobre o assunto foi dita.

17.1.23

Sinceramente comovida com o laço amoroso que entre Alicita e Álvaro se aperta, a rapariga da papelaria passou a autorizar a menina a ir mais vezes ao pai do que aquilo que era hábito e decreto. Afinal, diz ela, o fim de semana a cada quinze dias é procedimento antiquado, próprio de separações ressabiadas, o que agora se usa é partilhar a custódia. 
Mas, ó filha, não dês muita folga à corda, dizem-lhe as velhas, que mãe há só uma e se não te pões a pau a menina desafeiçoa-te de ti. Pudessem elas entender – ou lembrar – de onde vem a moleza de coração da rapariga da papelaria! Acaso não percebem nela mais leveza, um sorriso mais fácil, o humor mais ligeiro pela manhã, as costas mais direitas, o peito mais dilatado, até a pele mais resplandecente, a confiança escancarada em cada movimento do seu corpo? Serei a única a notar-lhe os tiques dessa felicidade por natureza distraída e preguiçosa que dá nos enamorados e que faz de toda a realidade um facto secundário e adiável?  

13.1.23

Sei, desse saber de experiência feito, como os amores trágica e prematuramente interrompidos fazem sombra a todos os que vêm depois. A morte tem um pincel que lhes retoca os detalhes, o luto passa-lhes um verniz de brilho, a saudade cobre-os de um véu divino. É claro que há – não duvido, porque vejo e sei que são a maioria – quem, ainda mal levantado dos escombros, logo encontre outro abrigo onde matar todas as fomes. Mas esses, suponho que amem com uma ligeireza que a mim falta ou então são merecedores de privilégios que considero raros e de que cuja abundância, francamente, desconfio. 
Os homens que me quiseram depois desse que me morreu nos braços – e sobre quem edifiquei as minhas convicções a respeito do amor – pareceram-me sempre demasiado fracos. Alguns lamentavam demasiado, ou idealizavam demasiado, ou obedeciam demasiado, ou intrometiam-se demasiado, ou pensavam com demasiada previsibilidade ou qualquer outra demasia sem benefícios à altura dos de viver só. Porém, quantas palavras tenho escrito sobre cada um dos instantes em que, por motivos tantos e sem razões inteligentes, lhes consinto a intimidade! É que, ao contrário do amor, cuja substância transcende o léxico e não é subjugável aos grilhões da sintaxe, o desejo e o prazer urgem ser ditos, têm fome de verbo. Inquietam, acordam súbitos no meio da noite, têm o efeito do álcool, que tudo enaltece, dramatiza, desata, extrema, ilumina. É essa ilusão, essa dissolução de fronteiras, esse caos de significâncias, que permite ao desejo imitar o amor e arrogar-se de cantar com a sua voz. Mas está tudo bem porque se desse equívoco resultar, pelo menos, um verso ágil e espantado, terá valido a pena.

12.1.23

A fórmula é relativamente simples e, até agora, perfeitamente funcional: primeiro inventa-se e quando a invenção estiver banalizada e dela estiverem dependentes as massas ao ponto do dano evidente, aplicam-se taxas sobre o seu uso ou cria-se uma alternativa de custo superior. Ganha-se na primeira volta e ganha-se em todas as que dela advierem.

10.1.23

Convenhamos que, na vingança, o que menos importa é a temperatura de serviço. A apregoada vingança fria é já tão distante do seu propósito que, embora possa ferir o alvo, pouco nos satisfaz. O tempo dilui a fúria e, sem fúria, é modesta a dimensão do gozo. Eu prefiro confecionar a vingança em lume forte, de coração ainda atordoado e mãos trémulas. Raiva, dor, mágoa, despeito, tudo entra em combustão numa fogueira que, pela noite dentro, vai crescendo com as sombras, os fantasmas, as ventanias, os rumores nas camas dos vizinhos. Atiçada por emoções vívidas, acredito que a vingança perca em sofisticação mas compensa no que ganha em corpo e sangue ao erguer-se e caminhar avante como um soldado inebriado, suicida, disposto a tudo. Tantas vezes a cozinhei assim a horas mortas, a delirar sob o efeito inflamatório de golpes profundos, e, no entanto, nunca cheguei a servi-la, nem a quente nem a frio. Não é que eu seja boazinha. Sou antes preguiçosa e fico à espera que uma justiça de forças superiores jogue a meu favor e me poupe à trabalheira.

23.11.22

Vejo Bárbara assim que entro, está de costas para a porta, debruçada sobre qualquer tarefa dessas que convocam toda a intimidade do corpo e no seu abrigo sucedem, como escrever, costurar ou arranjar as unhas. O motivo pelo qual não se vira para um cumprimento só depois atinjo, mas tenho a certeza que me pressente porque cheguei a arfar. Estou tão cansada! Gritei demasiado à médica que encolheu os ombros ao sofrimento agudo do meu menino com cabelos de oiro velho e olhos de mar de inverno. Limitou-se a escancarar-lhe a boca, apontou um feixe de luz à goela e disse, do alto da pilha de livros marrada por imperativos de ganância: deram cabo dele, mas não posso fazer nada. Na minha boca, a ameaça de vómito. Nem mandar um relatório à polícia? perguntei, avançando já para ela, o sangue a levantar fervura, o coração num rodopio centrífugo, a musculatura dos dedos a preparar o golpe. Não, e pôs-se a lavar as mãos como num dia ordinário, de viroses, traumatismos, cálculos renais, intoxicações, mortos por esperas demasiado longas que ela esquecesse ao final do dia  –  a dor alheia é tão diminuta. Não me lembro de sentir tamanha raiva, nem me sabia capaz de agredir com tal violência, de arrancar cabelos e dar cabo do mundo à dentada. Talvez a tenha matado, deixei-a de bruços sobre o lavatório, exausta de se defender. 
De modos que quando entro e vejo Bárbara acho que, embora de costas, ela me sente porque a minha respiração tem vestígios ruidosos do desarranjo emocional e da violência. Mas, como eu disse, ela não se vira, a não ser quando lhe toco nos ombros e pergunto Como estás? Enfrenta-me, então, com os olhos líquidos de tristeza e incredulidade: Não se nota? Disfarço o horror e desculpo-me com a sentimentalidade primeira que me ocorre: Não é no que vejo mas pela forma como falas que sei se estás bem. Bárbara tem o rosto deformado, semelhante a uma pera, duas covas sem luz para ver o mundo, derrames por ambas as faces e na testa mais abundantes, roxos como a morte, elevando-se pelo couro cabeludo fora e visíveis através de peladas. O cabelo que sobrou perdeu a cor. A boca é uma fenda obscena, a rir com esforço da ironia do destino. Envelheceu de modo abrupto, está a caminho de cadáver ou monstro. Quero ter pena dela, mas o meu coração rejubila por qualquer coisa que podem nomear como vingança, que os códigos da moralidade punem com perpétuo arrependimento e que por isso vive no subterrâneo de almas dóceis e civilizadas a comer as mágoas do dia anterior. 

Não sei como consigo ser tão má quando sonho. Eu, servida crua no divã, havia de ser um banquete para os doutores da psique.