31.3.20

Aqueles que esfregam as mãos ao supor as contrariedades que o isolamento traz aos outros e as lições que hão de eles aprender agora, são a evidência de que embora as grandes convulsões reorganizem as sociedades, reformulem leis e sistemas de governação, desloquem fronteiras, inspirem correntes, estruturas e abordagens na arte e no pensamento, nada, através dos tempos – nem praga, nem guerra, nem tsunami –  é suficiente para lavar as nódoas que empestam o ego humano.

29.3.20

Separado da mãe, que labora no grande exército contra o perigo invisível, Joaquim resguarda-se no ninho da família paterna sem saber quando voltará a cheirar o corpo que o pariu e alimentou em esforços de sangue e suor. A imperatriz tem a força, o instinto e a inteligência ao serviço de uma única causa, mas não é a sua nem a do tão amado filho. Disto fico a saber no tempo breve de um aceno, quando o senhor Pereira caminha para norte no passeio a poente e eu para sul no passeio a levante, sem que o ronco brusco de nenhum automóvel interfira na conversa. Veja a menina como nem tudo é mau. A desgraça que varre o mundo traz-lhe a felicidade de partilhar a clausura com o neto porque o filho, mais uma vez, foi de armas e bagagens lá para casa, aterrorizado de se ver sozinho com a cria nos braços em tempos tão incertos. É claro que lamenta pela imperatriz, que sempre que pode fala com Joaquim por chamada de vídeo e chora como jamais um Pereira imaginou que ela chorasse. Está só e extenuada. Nem sequer pode visitar a mãe lá nas dobras áridas da serra, aquilo é que é isolamento a valer, que vírus é que tem interesse em lá chegar, caramba? O senhor Pereira ri da própria estupidez mas apressa-se a remediá-la quando nota que não alinho. Coitada daquela rapariga, diz, e é pior a emenda que o soneto. Ah, incapaz de resistir a fazer uso da arrogância nesta hora, troca as voltas à história e diminui a mãe do neto pela via da piedade. É a primeira vitória do senhor Pereira sobre a imperatriz, uma vitória suja, mas ele levanta o troféu várias vezes coitada, coitada, coitada, queira deus que não lhe aconteça nada.
Os Pereira desconheciam a força de abalos imprevistos porque a vida inteira trabalharam pela linearidade e constância e foram sendo de tal forma bafejados pela sorte e protegidos pela condescendência divina que até os pequenos desaires e vergonhas lhes aconteceram na medida certa para esconder no fundo do armário e debaixo dos tapetes. Agora, parece-lhes impossível que a ciência, chegada aos cúmulos a que chegou, não tenha já na manga a solução. De modo que de hoje para amanhã, vai-se a ver e foi só o susto. Nem este desastre eles consideram como tal, não há nada que esfrangalhe a sua superioridade. Os outros é que, coitados.

28.3.20


Chuva miúda, Luís Landero

27.3.20

Este nojo físico que aprendemos a ter uns pelos outros, que cultivámos até se tornar num automatismo, que tiraniza agora todos os nossos gestos, movimentos e ideias, assusta-me. Algum dia tornaremos a obedecer, de ânimo leve, ao instinto? Voltará a soar-nos razoável a ideia de que a epiderme é o mais profundo e honesto de todos os lugares onde o sentimento se manifesta? Estenderemos de novo a mão, sem filtro ou reserva, para amparar um estranho que vacile ao nosso lado? Passada a tormenta, seremos capazes de resgatar aos escombros a forma original de reconhecer, desejar e confrontar os outros?

25.3.20

Eu já não tinha uma orquídea desde a morte de Julieta, caída da janela por amor a um gato vadio, de cor preta, que em patinhas de lã nos rondava a casa despertando sonhos impossíveis naquela corola tão aberta e inocente. Deu-se a tragédia, se bem recordo, numa manhã de sábado e eu tomei para mim as culpas que não tinha, acusei-me de negligência grave e condenei-me a nunca mais ter à minha responsabilidade flor alguma, muito menos espécies sensíveis que se apaixonam por gatos sem nome nem residência fixa e por eles se debruçam fatalmente nas janelas. Passei a rodear-me apenas de plantas dispostas a aceitar a vida como ela é, sem sentimentalismos ou caprichos desajustados à sua condição e que me dão mais benefícios do que aqueles que me exigem. Enfim, confesso que até vejo na resignação uma virtude meritória se me facilitar os dias. De modo que tenho a casa cheia de lírios da paz, espadas de são jorge, arecas, dracenas, clorofitos, heras, todas em pacífica e feliz coabitação.
Mas uma orquídea foi desenhada para desarrumar os corações humanos, há de ser obra do demo ou das horas vagas de deus, quando ele já não sabia o que fazer à criação e, para se entreter, a polvilhou de miúdos venenos, feitiços e armadilhas. Os poucos que resistem a orquídeas é certamente porque nunca tiveram uma. Uma vez postos os olhos na sua beleza, em estreita afeição e cuidado, está tudo perdido.
Trouxe então, há quase um ano, uma nova orquídea para esta casa mas decidi não lhe dar grande importância, que é logo modo de pôr travão aos abusos. Nem sequer escolhi a mais bonita. E por receio de uma vez mais ser inútil o investimento de tempo em estudos detalhados sobre água e iluminação, pousei-a onde me deu jeito e por lá ficou, borrifada ou regada se calhasse eu lembrar-me. Depois de lhe caírem todas as pétalas – pela imposição dos ciclos da natureza, note-se –, mudei-a de lugar e escondi aquele desconcertante esqueleto debaixo de uma areca, regando-o de longe a longe com um desleixo propositado, como quem diz: toma lá e faz-te mulher, se for para sobreviveres, sobrevives de qualquer maneira. Passaram meses, até que a Luísa reavivou a memória das orquídeas e eu fui espreitar e dei com seis botões muito verdes e redondinhos no braço mais longo desta, que – juro! – nem lembro de que cor é. Entusiasmei-me, claro. Mas, por via das dúvidas, depois de tirar o retrato à janela voltei a enfiá-la junto da areca, não vá dar-lhe a mania das grandezas e, como a outra, apetecer-lhe provar do que não lhe é destinado.



24.3.20

Do que tenho lido pela blogosfera, noto que estamos mais virados para a guerra do que para a paz e que aqui, nesta crise inesperada que atravessamos, muitos sovam aflitivamente o ar num combate com os próprios fantasmas. É a esquerda, é a direita, é o que devia fazer-se, é o que está mal feito, é o que vai acontecer, é o que não é bem assim, bate agora aqui, a seguir além, todos incompetentes, todos falsos, todos oportunistas, eu dizia-lhes como se faz, eu que estou acima e mais além, eu que domino as ciências, as exatas, as abstratas, as sociais e as ocultas, eu que já sabia que isto ia acontecer, deste meu sofá via tudo antes de vós, eis as previsões, aqui as suposições, ali as curvas e agora as contracurvas, eu logo disse, eu bem avisei, agora amanhem-se, agora unam-se, agora escondam-se, agora ergam-se, agora demitam-se, agora tratem-se, irresponsáveis, paranoicos, negligentes, alienados, todos burros, todos errados.
*
Por favor. Se não podeis ou não sabeis ajudar, então um pouco de silêncio. É preciso calar para escutar, para saber, para aprender. Recolhei essas armas porque não servem nesta luta, só cortam o ar e o ânimo, é melhor uma história, um retrato, uma graça, uma visão, um verso que acrescente, um pensamento que brilhe. Amanhã mudamos as leis, os decretos, os partidos, os governos, as cabeças, as ideias, e quem achar que é assim tão diferente dos outros, que está mais certo e melhor, mude até de mundo, outro ao seu gosto talvez haja num universo tão vasto. Guardai para amanhã as raivas, as ganas e as cegas convicções. Toda a energia e segurança que delas parece emanar será necessária para a nossa reconstrução.

23.3.20

Saio para levar jornais e revistas a quem só pode andar na rua pelos mínimos. A tarefa proporciona-me a felicidade de entrar papelaria adentro como a criança a quem dão duas moedas para uma mancheia de lambarices. Entrincheirada atrás do balcão, a rapariga recebe-me com uma alegria serena, invulgarmente dócil, como se o seu coração se tivesse expandido para lá do velho desgosto de amor. Enquanto me trata dos periódicos que listei, conta-me da luta que tem sido para manter a mãe em casa e resigná-la a uma injusta e desproporcionada condição de inválida. É verdade, a insurreição dos velhos anda agora nas bocas apartadas do mundo, enfim, há sempre alturas em que as lógicas se invertem, não sei se para efeitos de vingança, de empatia ou ambas. Todos os dias, é certinho, chega a casa e está a mãe na rua, à conversa com duas vizinhas, trocando novidades miúdas do quotidiano, como se a vida continuasse na ignorância de possibilidades como epidemias ou desastres económicos. A uma delas, veja se isto cabe na cabeça de alguém, ainda há duas semanas nem dirigia palavra, desentendidas que estavam por assuntos do condomínio mal explicados e pior resolvidos. Agora parece que a ideia do fim do mundo desfez certos equívocos e azedumes, embora tenha despertado outros. Juro-lhe: tenho de levantar a voz, mandá-la para dentro, obrigá-la a mudar de roupa e a lavar as mãos. Não sabe se chora ou ri ao lembrar quantas vezes a mãe fez igual com ela, numa ou noutra noite arrastando-a por uma orelha diante do pasmo dos amigos, vergonhas destas a gente não esquece mas era assim que se disciplinava a canalha, por cada desobediência, cada saída à revelia, cada minuto de atraso sobre a hora marcada, um dia inteiro de castigo sem televisão ou sem telefone. Nunca percebemos porque nos aprisionam aqueles que nos querem bem até ao dia em que vestimos o fato do carcereiro e os motivos que tanto repudiámos se tornam urgências ou bandeiras.
– E Alicita, como vai?
Diga-se o que se disser, é no coração das crianças que germina o dia de amanhã e eu preciso de ouvir falar de graça, luz, futuro. A rapariga da papelaria pousa o troco no balcão para evitar que eu lhe toque e, com um suspiro, faz notar a frágil condição do mundo e dos Homens.
– Já só espero que Deus lhe dê o privilégio de uma vida em liberdade.

20.3.20

Ainda tenho os sonhos afinados pela vida de antigamente, quero dizer, a vida da semana passada. A profundidade da minha consciência tarda a sintonizar as novas frequências, não acata as normas de distanciamento nem assume o rigor calculista dos movimentos. Esta noite, por exemplo, nem imaginas, dançámos juntos, arrancando a respiração à boca do estômago com os rostos encostados. Dois autênticos primitivos, insubordinados, reles marginais a precipitar a morte e o fim do mundo. 

O presente demora sempre a instalar-se. Quando ganha o seu espaço e o sedimenta, estamos já no futuro. É então que muitos de nós, às vezes com anos de atraso, começam a ser perseguidos pela noite dentro. 

19.3.20

Da ideia de deus – insistes – tens uma impressão de bondade e por isso esperas dele que faça os consertos ao mundo com justiça. Mas a bondade é o prato leve da balança, que perde para qualquer perda, qualquer pena, qualquer pedra. Deus não tem moral, é um milagre neutro, subentendido, desenhou as coisas com espanto e defeito, acertos e desacertos, leis matemáticas. Ignora as noções de bem e de mal. Não estalará os dedos contra ou a favor de ninguém, mas sempre e só para preservar intacta a magnífica totalidade da sua criação. 

18.3.20

Sobe? pergunta o meu vizinho, com uma perna esticada para o sensor e, ao colo, de feições dóceis, insuspeitas, o diabrete que concebeu. Olho para dentro do elevador e, pela primeira vez, tiro-lhe as medidas exatas para concluir que não, não é de bom senso enfiar-me em tão diminuta área com aquele homem e a sua criatura. Já lá vai o tempo. Agora, não há encantos, modos ou perfumes que justifiquem aproximações. Verdadeiramente atraente, só aquele que, por milagre, feliz acaso ou potencial genético, tenha imunidade garantida ao novo coronavírus.

17.3.20

Enquanto estendia a roupa ao sol e ouvia o bulício dos pássaros, pensei outra vez na minha irmã no campo de batalha, olhos nos olhos com a bicharada através de uma lente, ora de noite, ora de dia, e envergonhei-me da placidez do meu recolhimento, das pragas que roguei ao universo por – oh, coitadinha de mim – não conseguir descodificar o erro na instalação de software.

15.3.20

Tão esplêndido o rubro nascer do sol a que assisti ontem como a chuva que agora vejo cair doce e melancólica. A natureza olha para nós com a mesma grandeza, sobranceria e tranquilidade. Tudo nela mantém a cor e o ritmo, nada disto que vivemos interfere no seu humor. Já era sabido - embora por arrogância tenhamos suposto o contrário - que não é de nós que depende para continuar.

14.3.20

Não creio que inspirem qualquer tipo de fascínio as pessoas que, dentro ou fora das redes, ajuízam do comportamento alheio com espuma na boca e quatro pedras na mão. Se em tempos serenos é verdade, nos de crise é notório: o ódio pelo semelhante é tão ou mais nocivo do que qualquer postura de negligência ou paranoia. Mas preservemos a fé porque tal como as do corpo, também as mazelas do caráter podem ser vencidas com disciplina, contenção e até isolamento.

13.3.20

Hoje sim, todos os nós da VCI finalmente desatados. E à porta da escola secundária, uma adolescente quase em lágrimas, para a amiga: como é que eu vou aguentar, se não fui feita para estar em casa... A outra responde liga-me quando quiseres, eu estou sempre contigo, mas o abraço que de forma tão perfeita remataria a conversa está proibido. Mais de um metro as separa, os olhos líquidos, as bocas trémulas, os ombros descaídos. Passo por elas com a cabeça baixa, talvez seja a vergonha pela parte que me toca, pelas décadas serenas que tenho vivido, pela paz, pela pedra, pela rede, por tudo o que era seguro e com um nada se esboroa, por tudo o que confortavelmente se comprou e vendeu, fez e desfez, atou e desatou, casou e descasou, investiu e empenhou, usou e descartou, sem acautelar nenhum deslize, nenhuma fraqueza, nenhum inferno. Pelo que lhes ensinámos e afinal era mentira.

11.3.20

Há quem discorde mas eu acho o Porto na mesma. De manhã, não lhe noto mudança de ritmos, modos ou feições, o trânsito escoa com a lentidão habitual, a rádio anuncia os trombos de sempre no nó de Francos, na saída da VCI para o Campo Alegre, no túnel de Águas Santas, os toxicodependentes envenenam-se debaixo do viaduto, as crianças formigam à entrada das escolas, o metro segue apinhado, faltam lugares para estacionar. Porém, na empresa cheira a lixívia por todo o lado. É um produto que não uso e cujo cheiro me dá náuseas, abro as janelas para respirar mas há sempre quem proteste por medo das correntes de ar. A cada dez minutos, os meus colegas desinfetam as mãos e fazem refresh à página das notícias. As reuniões são rápidas, não há conversas paralelas em sussurro, decide-se o essencial em tempo útil. Muitos de nós, se quisermos, estamos autorizados a trabalhar a partir de casa, mas eu escolho ficar, agrada-me a vida de qualquer modo, adiarei o cárcere e a solidão enquanto puder, tenho idade e saúde para isso. Quando saio, passo no supermercado porque o leite dos miúdos está no fim. As prateleiras foram varridas, uma mulher leva dezoito embalagens de grão de bico e um velho açambarcou todas as caixas de minis e casal garcia que couberam no carrinho. Quando me dá o troco e o talão, a funcionária da caixa diz-me que tudo corra bem consigo, meu amor, adeus, com o tom de um soldado a despedir-se dos companheiros de trincheira antes de enfrentar o inimigo. Faz-me falta o meu pai e a sua superior inteligência e lucidez no modo de explicar o comportamento desta bicharada ruim e invisível. É ele quem procuro imitar quando alerto os meus filhos para os vírus e para os perigos letais da ignorância, da perversidade e da histeria.
De resto, estou bem. Nada ameaça as partes de mim que te desejam.

9.3.20

Ao fim da manhã de ontem, o senhor Pereira descia a rua com o saco do pão, um bouquet de rosas cor de sangue mais o jornal entalado numa axila, prestes a cair. Vendo-o aflito, a contorcer-se e a sussurrar esconjuros não sei a que demónios, acudi-o amparando o jornal e ele, grato, fez-me a festa do costume. Contou-me depois, enquanto suspirava os seus cansaços e alívios, que só por um triz se safou de aborrecimentos com a mulher. Esquecido da data, porque ao domingo se uma pessoa repousa é para repousar por todo, até nas ideias, nada tinha comprado para lhe oferecer peloito de março. As filhas podiam tê-lo lembrado mas, enfim, a juventude menospreza esses pequenos agrados que mantêm o laço do casamento apertado até à morte e é por isso que as coisas andam da maneira que se vê. O que o salvou, então, foi a insistência da mulher para que lhe fizesse o favorzinho de ir à rua buscar meia dúzia de carcaças, já que a chuva miudinha podia dar cabo do trabalho que, na véspera, a cabeleireira lhe fizera. Foi contrariado e ao chegar ao pão quente fez-se luz, não propriamente por obra do acaso ou do divino mas porque se cruzou com a viúva e ela, magnífica como é uso, faça sol ou faça chuva, em dias úteis ou inúteis – a menina não concorda? –, perguntou-lhe se já tinha mimado a mulher. Num repente, o senhor Pereira desatordoou o cérebro, que vinha naquele sono domingueiro a que um homem – caramba! – tem direito, e correu à florista adiante da rotunda, de porta aberta e escancarada desde as nove em benefício dos pereiras desta vida. 
Agora, a caminho de casa, deitava as mãos à cabeça só de imaginar as consequências que a sua distração poderia acarretar, sem saber a quem mais devia a sua gratidão: se à mulher por tê-lo obrigado a sair, ou à viúva, tão atenta e preocupada. Num ou noutro caso, tinha assegurada a sua paz por largos dias, até semanas, lá em casa. Altura ideal para pedir um arroz de cabidela e talvez continuar adiar a verificação do aplique que anda com mau contacto, sem que daí venham lamúrias e problemas.
– E a menina, alguém lhe ofereceu flores hoje?
– Ah, a mim não, senhor Pereira. 
Ele redistribuiu com mil cuidados a carga que levava, endireitou as costas e antes de se despedir:
– Não me leve a mal, mas a menina se calhar também não faz por merecer.

6.3.20

Agora que os fins de tarde se amenizam e prolongam, às vezes as meninas do colégio descem a rua ao encontro dos rapazes da escola pública. Gosto de as ver à espera deles do lado de fora do portão, com os cabelos alisadinhos e uma nesga de perna à vista, doce e branca, entre as meias altas e a bainha do kilt. Os rapazes da escola pública comportam-se como astutos traficantes de emoções, têm motas, mata-velhos e cigarros, cabelos sem governo, horários flexíveis, dezoitos e vintes só com desmedido suor, pais que nem sempre sabem onde eles andam. Provocam-nas com piadas subversivas, mas logo usam um gesto terno ou chegam o nariz ao pescoço delas para endireitar a situação. E o riso que riem juntos é o riso da desordem e do excesso, um riso sem propósito nem freio, por isso os adultos que passam desconfiam e temem que daquela leviandade venha o fim do mundo. 
A adolescência não é o mais seguro nem o mais razoável tempo das nossas vidas, mas é provavelmente o mais honesto. 

5.3.20

O facto de ser mais ou menos certo que só a mediania gera consenso não significa que tudo o que é controverso seja de produção genial.

3.3.20

Quando dizemos que antigamente é que era bom não é de outras épocas que sentimos falta. Do que realmente temos saudades é de estarmos mais longe da nossa própria morte. Não suspiramos pelo tempo em que vivíamos, mas pelo tempo que tínhamos ainda de sobra, pela inocência, pela energia, pela paixão. O sentimento que provoca o desdém de cada geração pela seguinte é a inveja.

2.3.20

Tenho pela escrita um amor estrutural, velhinho, genético, de que desfruto sozinha e em sossego. Nenhum outro se lhe pode sobrepor, dele tiro pão e prazer. Se me perguntam porque acontece assim, mal sou capaz de explicar e talvez essa seja a mais justa e honesta resposta a dar sobre o amor. Mas, confesso, escrever não me dá o gozo libertino, quase perverso, que sinto quando estou atrás das câmaras, a mexer no caldeirão onde são cozinhadas as mais impossíveis ilusões. A farsa, o efeito, manipular, transfigurar, construir, distorcer, fazer chuva, fazer sol, conceber um desejo e um desastre, abreviar o tempo, solucionar a desordem, implementar esse regime de ditadura sobre a visão dos outros, dar o ecrã como quem dá a vida inteira de modo a que não se note a ridícula dimensão do fragmento, enfim, contar uma historia em que tudo é verdade ainda que nada, rigorosamente nada, seja real.