27.5.23

Das coisas que por amor nos dispomos a fazer, já muitas histórias rezam e não há de ser esta a engrossar o rol. Parte delas são rasgos de heroicidade, fazem crer que a paixão alcança os impossíveis e por isso são aplaudidas, elevadas, versejadas, prolongando assim a doença do romantismo. Mas outras histórias há, menos felizes, que precipitam os seus protagonistas num vórtice de indignidades, orientadas por esse nobre valor a que se chama esperança e em nome do qual toda a sujeição se toma por legítima. Destas, infelizmente, se fala agora na papelaria pois o novo amor da rapariga, pleno de bons augúrios e abençoado pelas velhas, revelou-se, afinal, uma armadilha. Em armadilhas já todos caímos, é verdade, e quantas delas montadas em lençóis alvos, insuspeitos, sem vinco a apontar: Mas o caso da rapariga da papelaria agrava-se porque é tão grande nela o medo de morrer solteira e desconsiderada pelo mundo, que se entrega sem cheirar o perigo. Só num coração livre de medo pode funcionar a intuição. 
O caso conta-se em duas linhas e dá mais pena a banalidade que é do que a infelicidade que trouxe. O homem que vinha alegrando os dias dela, a pessoa madura, afinal é um marido enterrado até ao pescoço num lar de família. Desses que, por suspeitar de um desvario da mulher e por esta se encontrar ausente por mais tempo do que o razoável, correm logo a garantir-se entre outro par de pernas, não vá o diabo tecê-las e deixá-lo morrer de todas as fomes. Se para cada panela se diz haver no mundo um testo, certamente que para cada patife há pelo menos uma tontinha. E não é a rapariga da papelaria a mais perfeita?
Gabi festeja. Vê desconstruir-se diante dos olhos do Marco a imagem santificada da sua rival e esse é o melhor desfecho para a disputa que o seu coração –  também medroso e por isso imaginativo – inventou. Meter-se com um homem casado – ah, não me venham dizer que ela não sabia porque uma mulher sente, uma mulher sente! – é a prova de uma falsidade sem tamanho, é falta de tudo!, diz entredentes no vaivém da lima. Falta de decência, falta de respeito, falta de juízo, falta de esperteza, falta de caráter. No salão, ninguém trava a língua de Gabi. Quem resiste a um carrossel de maledicência? Só a dona Maria Isabel (há quanto tempo!): 
– Evite ser demasiado moralista, menina, que aumenta o risco de darmos consigo precisamente entre os imorais. 
– Não percebi.
No meio do desastre, só as velhas lembram que enquanto há ternura há esperança. 
– Dona Fatinha, a sua filha deve ter mau olhado. É a única explicação.
Comovi-me com o veredicto. Estas velhas, tantos anos de roda da papelaria, a raspar o sonho dos milhões que nunca saem e a ver aquela doce rapariga crescer, desgostar-se e dar à luz, como haviam de a ofender, tomar por estúpida ou colar o triste rótulo de amásia? Não, elas têm outro diagnóstico e assim mantêm intacta a inocência da sua menina, para quem o destino tem sido um burlão de primeira. Há muitas formas de ser generoso para com os erros dos outros. A cegueira de faz de conta pode não ser a mais certa, mas há horas em que é a única possível.
Dona Fatinha não abre a boca. Anda como um fantasma, perdeu o fio da meada dos dias, descuidou o cabelo, só aparece de tarde na papelaria. A filha precipitou-lhe a velhice, já só espera dela o golpe de misericórdia.

15.5.23

Concebido contra todos os planos e probabilidades, acidente fisiológico, fruto de uma urgência amorosa que a saudade empurrou até à insensatez  – o meu menino com cabelos de oiro velho e olhos de mar de inverno converteu-se na minha mais útil expressão de ternura. Sobre isso, porém, recuso que me sejam atribuídos méritos. Já nasceu assim, todo derretido com as coisas da vida, confiante, capaz como poucos do entendimento e do perdão. Porém, a passos largos no caminho de ser homem, acorda agora todos os dias como um estranho que acabasse de pousar na Terra. A cada manhã dou, portanto, à luz um novo ser e só desmemoriando as dores do parto da véspera posso retomar o laborioso fito da sua educação.
Com o rapaz voador a mudança foi mais lenta e misericordiosa. A cada dia um sinal, um passinho mais a longe, uma horinha mais tardia, mil cuidados para não sobressaltar este coração de mãe, que em resistência terá sempre mais fama do que proveito. Entretinha-se com pagode brasileiro e outras ligeirezas próprias da idade e assim me despistou, a fazer-me crer que se prolongava a sua inocência. Precisei de vários anos anos para notar que estava, afinal, todo cheio de ciência e filosofia e que as suas escápulas de atleta se haviam desdobrado num portentoso par de asas, capaz de o levar aonde eu nem em sonhos. Mas no menino com cabelos de oiro velho e olhos de mar de inverno dá-me a impressão que a natureza quis despachar o trabalho de uma assentada e arrancou-mo do colo entre dois sóis, sem respeito pelos meus sentimentos. Estranho muito nele o tamanho, a voz, as razões, os gostos, a seriedade, Sinatra, Elvis e Piaf na playlist
Tenho ainda de cor os seus medos de infante, trato por tu os monstros que dormiram debaixo da sua cama, quantas vezes a meio da noite não os arrastei pelos colarinhos porta fora? Gostaria muito de o poupar às dores que o futuro lhe reserva, às mínimas escoriações do quotidiano, ao punhal dos traidores, ao vácuo onde o desgosto amoroso mergulha as almas crédulas. Mas que posso eu contra o caos do mundo e a frágil condição da humanidade? Dia após dia, mortifico-me com o inventário das desgraças possíveis e imaginárias e revejo as lições que lhe passei nas entrelinhas do amor: saberá dizer não, saberá virar costas, terá pulso, terá fibra, terá força? Por vezes, admito, até peço aos deuses e a todas as suas imitações que o abençoem também com alguns dons de carrasco, porque nos romances de ecrã e de papel se conta que os puros de caráter vergam com grandes dores e sacrifícios e, embora os seus nomes sejam depois lembrados, benefício algum lhes é concedido.
Acalmem-se os que a esta hora já me supõem uma dessas mães que querem segurar os filhos como amantes prediletos a vida inteira. É o contrário. As asas que os meus têm, fui eu que lhas dei, desde cedo, e cuidei sempre para que em estrutura e amplitude sejam bastantes, de forma a que, comigo ou sem mim, eles possam aventurar-se até morrerem. Acontece, porém, que, embora o amor genuíno seja o que consente a liberdade do outro, cada passo de um filho para longe da sua mãe é sempre uma amputação a tratar com solenidade e ternura. E o contrário só dirão os ingénuos, os mentirosos, ou os coaches da vida plástica.