15.6.21

 – 'Tás a ver a cena de sentires que fazes tudo por amor, mano?
Quanta inocência há no entusiasmo dos dois garotos que seguem na minha frente, de mochila às costas, sem barba nem pressa, chutando ao acaso as pedrinhas da rua. E o que faz por amor um inocente senão começar, lentamente, a corromper-se?

12.6.21

Dez da manhã de sábado e já os homens se pegam no tasco por causa da bola. Cá fora o ar está espesso, arde na pele, ferve na garganta. Uma aragem muito seca, de mau agoiro, desinquieta as páginas do meu livro. Lá dentro ecoam insinuações, ofensas e ameaças veladas. Uma grande penalidade injusta, um fora de jogo dúbio, a memória de um mau resultado na época passada... A cada trouxa de roupa suja que se lava, o desentendimento aproxima-se mais da violência. Assuntos de família e contas antigas já são chamados ao barulho. Felizmente alguém se lembra: ó Moreira, outra rodada para todos, que pago eu, e nesse mesmo instante se dilui a desavença, troam gargalhadas e saudações.
É desconcertante ver que com tão pouco se magoa a honra dos homens e com menos ainda se adormece as suas fúrias.

11.6.21

Dona Maria Isabel vem poucas vezes a este blog. Há de ter mais que fazer do que enredar-se nas tramas do meu vulgar quotidiano e como é pouco faladora também não se põe a jeito. Mas hoje a cabeleireira viu-a passar e chamou-a ao barulho, curvando-se toda para lhe lamber os degraus académicos: 
– Há quanto tempo não dá um jeito às unhas, sotôra? Caramba, sotôra...
À dona Maria Isabel nunca falta aquela delicadeza própria dos que, embora sejam postos adiante, jamais se arrogam ou condenam os que ficam para trás, porque sabem que da mesma forma que nem sempre o êxito é questão de inteligência e esmero, também sucede a mediania e a estreiteza de vistas serem uma consequência mais de circunstâncias do que de escolhas. Então sorri como as mães usam sorrir, com ternura e infinita paciência, reconhecendo o quanto a cabeleireira merece que a vida lhe corra bem.
– No próximo fim de semana passo cá, minha querida.
A cabeleireira vai sacando do cigarro e do isqueiro e olha-a de alto a baixo.
– A pandemia envelheceu-nos a todas, mas a sotôra continua es-pe-ta-cul-lar! Dá nervos. Chegasse eu à sua idade nesse estado...
Dona Maria Isabel enrola os dedos nas contas do colar, sem pressa de responder. Não embarcará no facilitismo de uma gratidão sonsa e na vulgaridade da falsa modéstia. Nem será um elogio avulso e pouco original que a vai fazer ganhar o dia. A mulher que ainda antes da maioridade fugiu para casar e sobre o desgosto resultado levantou toda a sua magnificência, preferirá sempre o silêncio à ideia de abrir a boca para despachar. Jamais desconsidera a inteligência do outro supondo que o satisfará com pouco. Por isso se entendia tão bem com a antiga manicura, ambas disparavam para acertar, não porque fossem movidas por agressividade mas antes por uma visão amorosa do mundo, que é atenta às suas feridas e nelas derrama o que arde na esperança sincera de curar. E se a manicura aplicava o tratamento à mangueirada, dona Maria Isabel verte uma gota a espaços. 
– O que te envelhece não é a pandemia, minha querida.
A cabeleireira concorda sem pensar muito. 
– Tem razão, esta porcaria é que dá cabo de mim.
E com um gesto apaixonado, quase teatral, esmaga o cigarro que nem a meio vai, entra no salão a despedir-se:
– Quero vê-la aqui no fim de semana!

10.6.21

Nunca, como na adolescência, temos tão lúcida e honesta noção da nossa esquizofrenia. Talvez o tempo passado no quarto, de portas fechadas, com o pensamento em remoinho, orelhas moucas a avisos e sermões, sob repetida acusação de egocentrismo e desleixo, talvez esse tempo permita alguma clarividência sobre a própria natureza. Nessa idade deve haver poucos que não se atordoem ao descobrir a quantidade de gente que lhes vai na alma: um que se esconde no fundo, outro que se aparenta para cumprir, outro ainda que chama em sonhos e sabe-se lá mais quantos a multiplicar por cada receio, vontade e convicção.
Diagnósticos com rede científica chamam a isto a busca pela identidade, condescendem e garantem que o tempo resolve ou ameniza, mas para mim tem outros nomes, todos sinónimos da condição humana e nem sequer passa, antes se calca, silencia, gere ou castiga, para que não venham acusar-nos de doideira. Chegando a adultos, adjetivamo-nos com uma confiança ridícula e vivemos a renegar o sarilho interior, convencendo os outros de que temos a nossa razão de ser e nela estamos sólidos e absolutamente genuínos, certos quanto à forma e ao feitio, seguros do que faríamos no lugar dos outros, ora essa, temos valores, jamais isso ou aquilo, sempre isto, sou uma pessoa que.
A inveja subterrânea que temos aos mais novos, muito mal disfarçada de descrédito e menosprezo, não é só pelo tempo que ainda têm por viver, mas porque lhes é desculpada toda a honestidade que em nós é censurada.

4.6.21

Bela é a imperatriz, que parece não conhecer a fadiga nem sucumbir ao desânimo. Qualquer coisa – ou a química ou o karma – a abençoa, mantendo-a longe do vórtice da infelicidade. Naquele corpo, que é sempre vestido de transparências, lenços e florinhas, encaixa o filho Joaquim como se ainda não tivesse acabado de o dar à luz. Sustenta-o no ilíaco, à maneira das mães de antigamente, e o menino abandona a cabeça no ombro dela e consola-se a jogar com aquela cabeleira de fogo, enrolando e desenrolando os deditos nos caracóis. And if you say run i'll run with you, and if you say hide we'll hide, because my love for you... vai ela cantando baixinho e Joaquim, que ainda é desajeitado na fala, corre atrás dos versos improvisando o idioma: aiuaiô aiu, aiuaiai uiaiiiii... 
Perguntaram-me se vai por diante a ideia de ambos irem definitivamente para Penedono, mas por enquanto nada sei. A pandemia trocou as voltas aos enredos de tantas vidas e eu ainda estou à nora, à espera que as minhas personagens larguem o casulo e deem sinais. De algumas ignoro o paradeiro e sobre outras tento agarrar o fio da meada, andando pelas ruas muito atenta, lendo os lábios e as entrelinhas da face, apanhando no ar as coisas ditas, imaginando daí as que se calam. Até pode dar-se o caso de a imperatriz e Joaquim viverem já em Penedono e estarem só de visita. Mas o que sei é apenas o que vejo e é igual ao que vi ontem e ao que, provavelmente, verei amanhã: a imperatriz e Joaquim descendo a rua na direção da casa dos Pereira, onde, sem esforço, só pela graça que têm, são responsáveis por olear todos os corações enguiçados. 

2.6.21

A fama que às mulheres é atribuída, tem dela proveito inteiro o meu vizinho. Balançam-lhe os humores conforme as luas, de maneira que não surpreende dar com ele a maldizer entredentes a sorte que lhe coube logo depois de o ter ouvido assobiar ou imitar as apoteoses de um tenor. A mulher, que gemia na cama com a cadência de um eletrodoméstico enquanto ele galopava até ao êxtase, é cada vez melhor a fazer de morta. A palidez do seu olhar está sempre ao abandono num ponto fixo e ao cumprimentar sorri com uma ternura cansada. Quem governa agora lá em casa é o diabrete que conceberam. Grita de manhã à noite, mas nada que se pareça com mimo ou desconforto. Tem antes o timbre e o despudor de um líder de arruaças, um instigador de revoltosos, parece gente crescida que passou pela infância sem dela recolher doçuras e, no entanto, mal completou três aninhos. Ontem, na garagem, de chucha na boca e olhos endemoninhados, guinchava como se lhe arrancassem partes do corpo. A mãe, a empurrá-lo no carrinho de passeio, desabafou: onde é que eu terei errado? Não respondi nem censurei. A culpa é o legítimo tormento de todos os pais. Deus deve ser o único que não se faz esta pergunta quando observa as falhas da sua criatura. 

1.6.21

Poucos são os jornalistas que resistem a perguntar às figuras mediáticas da literatura o que é preciso para ser um bom escritor. Num delírio passageiro, imagino sempre que o entrevistado vai descompor o pragmatismo infantilóide da abordagem com uma ironia qualquerMas parece que boa parte da gente das letras não só leva o manual de instruções a sério como tem na vaidade o pecado de estimação e, apoiando-se no disfarce roto da terceira pessoa, o escritor responde sempre prontamente com um resumo dos próprios hábitos, traços de personalidade e até mágoas. Nesse momento, milhares de almas no mundo caem num rodopio de ansiedade, umas a verificar que cumprem os requisitos, outras a pensar como hão de cumpri-los.