30.3.21

O meu menino de cabelos de oiro velho e olhos de mar de inverno, um dia destes acordou e era outro. Tinha a voz e as vontades distorcidas e contradizia-me por vulgar impulso, limão se eu dissesse laranja, verde se eu pensasse azul, ar se eu avançasse terra. Desconfiada, ainda assim beijei-o, notei que tinha o ventre liso, os dedos das mãos alongados, pescoço de animal corredor. Então verifiquei as marcas de nascença, contei os sinais hereditários, senti fraco o cheiro de vento e poeira e, na dúvida, perguntei-lhe onde escondeste o meu bebé? Respondeu-me como um assaltante no cúmulo da adrenalina, os olhos rebrilhando de gozo: praí numa dessas gavetas.
Não posso dizer que me seja estranha a impostura. Há uns anos, da noite para o dia, também fui dar com um rapaz cheio de gravidade e introspeção no lugar do mais velho, que antes vivia de trepar árvores, construir jangadas e fazer conversa com estranhos. Porém, ser mais sabedora não me faz menos fracaNenhum proveito o meu coração tira de estudos, conselhos, filosofias. A experiência vale tanto como argumento e nada como armadura! E a memória, de onde só resgatamos para uso futuro o que convém, tenho-a completamente subjugada, refém do exercício ruminante da saudade, sem qualquer utilidade prática. 
Que triste me é o fim da infância. 

26.3.21

Faz tempo que as duas comadres se provocam à distância. É um jogo dócil, quase despercebido, que cada uma faz para desacreditar a outra. O veneno vaza em conta-gotas nas entrelinhas de uma exemplar cortesia. Suspeito que se tenha tornado passatempo, forma de resgatar o cérebro ao torpor da clausura e à relação desigual com os livros, que no remate de cada capítulo não esperam do leitor opinião, acordo, adenda ou consentimento. Talvez deem ares de que competem em lucidez, independência ou destreza de intelecto e, com efeito, há que reconhecer que o verbo não lhes cai na lama e que os humores aparentam robustez e delicadeza de bambu. Mas eu vejo-as num salão de festas barroco, abanando os leques com um fervor desassossegado, olhando-se de viés, cada uma invejando a hora em que a outra é levada por um digno e experiente cavalheiro para um minuete (por deus, não vos descuideis com as vogais).

17.3.21

Daqui do canto ouço o mais novo, numa aula qualquer: 
– Ó stor, se não viu esse filme veja, porque é bué de interessante. 
Lembro-me tão bem da minha própria preguiça lexical. Na idade dele, quantas vezes despachei tudo com coiso e cenas porque a pressa de contar era grande e dar à forma a primazia sobre a ideia é uma perda de tempo a que, por natureza, a adolescência não pode dispor-se. O meu pai, um purista da língua, que se fechava horas a fio a rever, espremer e polir parágrafos, não se gastou nem me agastou com sermões. Aproveitava as minhas tontices para gracejar ou fazer trocadilhos. E foi nisto que dei: incapaz de uma frase com sentido, de articular uma ideia, de pensar pela própria cabeça.

12.3.21

Esta gente portou-se muito mal, não há dúvida que isto é um país de ignorantes, diz o senhor Pereira na fila do pão quente, com aquela lendária dignidade que faz crescer o peito do roto quando supõe falar ao nu. Há muito que o não via e, confesso, não sei se me desconcerta ou alivia que esteja igual. Se não é a imperatriz são as filhas, se não são as filhas são os vizinhos e se não os vizinhos então Portugal inteiro, todos incapazes, a precisar de autoridade, pai, marido, dono, rédea curta, reprimenda. Enfim, continua a fazer parte da mais ruidosa e cansativa subespécie de cobardes  os moralistas. Investe tempos livres a ensaiar sermões depois de ruminar, de costas repousadas na poltrona, o que de bandeja e cortadinho em pedaços lhe é servido nos parlatórios televisivos. Pobre senhor Pereira, sempre com o pensamento à trela pelo pulso de outrem e no entanto fala com a propriedade de quem tivesse sido convidado a subir ao palanque. Diante daquela plateia de braços cruzados e olhos ainda mal abertos, que aguarda vez para levar o pão, o senhor Pereira vai dizendo como foi, como devia ter sido e como doravante era bom que fosse. Por fim, dando como perdida a causa, remata: é o país que temos. E porque mais lá atrás na fila alguém se entusiasma  agora é que o senhor disse tudo  ele incha, acreditando que foi chave de ouro o que não passou de bijuteria embaçada e fora de moda. 

10.3.21

Os brotos de Isabela encaminham-se para dar lindas flores que hão de compensar-me pelas amarras do confinamento. Eis a minha orquídea, uma vez mais a esfregar-me na cara a sua fibra. Voltou a dobrar o outono e tem quase o inverno feito. À vista do seu caule seco, repousado na janela, caíram os primeiros aguaceiros, vieram depressões nomeadas como gente, vergaram-se os ciprestes aos tumultos ciclónicos, preguiçou a geada nos telhados, esvaziaram-se as ruas sob ameaça de multa, tornaram os aguaceiros, por fim o sol começou a demorar-se para lá da hora habitual. E eu ia dando como certo o óbito, sem notar a nova haste que desde a raiz se alongava para nascente, muito seivosa e verdinha.
 

9.3.21

Humilha-me a alegria com que certas mulheres aceitam a generosa e paternalista oportunidade anual de se mostrarem em peças jornalísticas sobre o seu sucesso. O mundo é como um zoo temático, com dias e circuitos dedicados a determinadas espécies sobre cujo comportamento social e evolução se debruçam simpáticos visitantes, aplaudindo as cabriolas e façanhas. “Vês, filho? As mulheres também fazem coisas extraordinárias como nós, tens de as respeitar e ajudar”, apontam os papás, muito esforçados em modernizar-se. Como recompensa pelas espantosas acrobacias demonstradas, vale atirar amendoins. 

8.3.21

Quase três da madrugada e desperta-me o ranger da cama do vizinho. Mas não, o que escuto não é a cadência de um galope amoroso. São as voltas do tédio e do desespero. Ele ou ela, um dos dois se atormenta pela demora do amanhecer, luta para se desfazer do peso do corpo e desligar a consciência, que a estas horas insiste sempre em operar a favor dos fantasmas. Acordada, logo me torno também presa fácil de duas ou três inquietações e quando dou conta já as oportunistas se enrolaram comigo nos lençóis. À falta de outra, talvez esta possa ser uma forma de solidariedade entre vizinhos.

6.3.21

Nesta conversa em podcast a escritora assume que viveu este ano e o confinamento muito zangada, com raiva e revolta. “Com vontade de processar o governo português se tivesse dinheiro. Porque estou presa em casa. Porque politicamente tudo isto deveria ter sido gerido de forma a proteger os frágeis, mas deixar a liberdade e a autonomia sob a responsabilidade daqueles que podem ser responsáveis. Ou seja, gostaria de não ser tratada de forma paternalista como tenho sido até agora. Não quero que haja um jornalista na televisão a dizer-me 'tenham noção'. Não quero ser tratada dessa forma nem por jornalistas, Presidentes da República ou primeiro-ministros.”

Grata a Isabela Figueiredo por este bocadinho.
(em entrevista no jornal "Expresso")

5.3.21

Tarde e a más horas reconheço a importância de uma mentira bem contada. Mentir é feio, costumam dizer os adultos na sua sobranceria de caráter, pretendendo enfiar no mesmo saco, com notório e atabalhoado esforço, a maturidade e a verdade. Mas feio é que não é. Mentir requer uma arte fina e construtiva a que não pode negar-se o mérito de poupar vidas. Num balanço que fiz por razões minhas, contabilizei as verdades que nenhum bem ou vantagem me trouxeram, antes me subtraíram forças e esperança. Que moral, princípio ou orgulho têm património bastante para justificar e cobrir o prejuízo? 
Claro que é difícil encontrar quem minta como deve ser, que nos proteja de desgostos com grandeza e imaginação e não se descosa ao insistir em frases feitas – sou incapaz de mentir! digo sempre o que tem de ser dito! – e noutros espalhafatos. Como em qualquer outro ato de generosidade, a mentira de boa intenção resulta melhor quando parece distraído e despojado o seu autor. De resto, para que nunca se torne um pecado, basta nunca ser confessada.