25.2.21

Esgotado o argumento literário do frio, explorámos o da chuva e agora o que nos tem dado assunto são os indícios da primavera. Como acontece nas relações de circunstância, nos dias miseráveis, ou quando evitamos perguntas que magoam e constrangem, o tempo que faz hoje e o que para amanhã se espera salvam-nos desta enorme desolação, deste silêncio absoluto.

22.2.21

Como a catraia a quem descontassem tempo de castigo, encho-me de euforia quando me pedem que dê um salto à empresa. Nos primeiros minutos do caminho dá-me a impressão do princípio do mundo, as coisas são absurdamente estranhas, há névoa e vagar como nas manhãs de domingo, a cidade não cheira porque não transpira as fumaças do seu labor e da sua correria. Enquanto conduzo, ouço a minha playlist de função energizante, mais de quarenta músicas cirurgicamente escolhidas para me manter os nervos firmes, livrá-los da melancolia, da preguiça, do desalento ou outras semelhantes, fazer o pé mais pesado no acelerador. O ritmo é tão oposto ao do real que soa a histeria e futilidade, mas ignoro a dissonância e sigo, brincando ao faz de conta que é um dia como os de antes. Ignoro também depois as salas vazias, os gabinetes às escuras, os telefones mudos, a copa abandonada, sento-me, ligo o computador, ponho os auscultadores para iludir a surdez. Revejo as varandas do prédio defronte, os ficus alinhados no terceiro andar, as redes de segurança das crianças do quinto, as poltronas de verga do primeiro, onde nunca vi ninguém sentar-se e assistir ao pôr-de-sol. Ora essa, tudo na mesma, assim me convenço ou fantasio. Para sobreviver, todos vamos retirando camadas do que somos. Retiramos, por esta ou outra ordem, a inocência, a rebeldia, a ambição. E, em dias assim, se for preciso, se nos poupar, retiramos até a consciência, a visão, a lucidez. Um dia entraremos na morte despojados de todas as camadas, um naco de carne pronto a ajoelhar-se diante do grande mistério, sem argumento ou contestação. 
Volto para casa e ao rodar a chave na fechadura quase me parece um fim de tarde vulgar. O mais novo anuncia-me que fez um bolo de chocolate, o mais velho foi correr, Isabela mostra-se grávida de seis brotos carnudos, apontados a levante. É hora de tratar do jantar mas, entretanto, esqueci a ordem das coisas. Então caio no sofá e ponho-me a escolher destinos de férias. A liberdade é um fôlego contagioso e galopante, um perigo absoluto.

16.2.21

Infelizmente, são precisos tempos delicados para vir à tona e ao entendimento o facto de que o mundo gira, sempre girou, a duas velocidades. Noto, com tristeza, que muito boa gente julgava, ou fazia de conta, que no carro mágico do futuro embarcavam todos por igual e com lugar sentado. Agora pasmam e enchem-se de piedade por verem que nas aldeolas que visitavam aos fins de semana para se inteirarem  pela rama  das graças da ruralidade e da vida simples ou nos bairros onde os candidatos ao poder se prestam a copos e bailaricos, há crianças para quem as aulas hoje, deste modo, são uma absoluta impossibilidade. Está certo que acordar é sempre uma vantagem e antes tarde do que nunca. Porém, tenho para mim que quando o carro mágico retomar o giro vertiginoso e magnético a que estávamos acostumados, cheio de festas, de cores e brilhos, com tudo fácil e pronto, de novo nos ajeitaremos na fila para a crista do futuro, aos magotes e empurrões, sem olhar para trás.

12.2.21

Não há órgão que tão rapidamente vicie na preguiça como o cérebro. É dar-lhe dois ou três dias de facilidades, poupá-lo a cálculos e construções, perdoar-lhe atalhos verbais e frases cujos complementos o bom entendedor faça o jeito de adivinhar, e ei-lo, encolhido na caixa craniana, sem ganas de ir além, comendo o que de digestão ligeira lhe levarem e que, de qualquer modo, para o gasto também chega. Não lhe peçam favores, receitas, soluções. Menos ainda argumentos. A certa altura, o tontinho há de preferir mudar de opinião ao trabalho de sustentar aquilo em que acredita. 

10.2.21

O dia todo ouço, dentro da minha própria casa, os professores dos meus filhos a imporem a sua autoridade e a exporem a sua ciência. É certo que os auscultadores foram feitos para evitar estes constrangimentos e se cada um de nós, no seu cantinho de trabalho, os usasse, mais silêncio reinaria no mundo e nem as minhas reuniões importunariam as matemáticas de um nem a anatomia dos adutores do outro interferiria nos meus scripts. Mas já basta termos de andar de boca coberta, se nos sujeitamos a passar oito horas do dia também com os ouvidos tapados só nos faltam mesmo as palas nos olhos.

4.2.21

Aos sábados de tarde, o Eduardo, que morava duas portas adiante, aparecia para brincar com o mais velho. Empoleiravam-se os dois nas copas das árvores e por lá moravam horas a fio, maquinando estratégias de batalha enquanto esculpiam arcos e flechas com paciência de chinês. À sua bravura e astúcia haviam de sucumbir exércitos de sanguinários que vinham do norte, pragas apocalípticas, malfeitores que surgiam detrás dos arbustos disfarçados de clérigos ou mendigos e outras tramas da imaginação. Um dia, quieta e calada para não perturbar tão justa infância, vi pela janela que deram com um pardalito morto no chão. Vasculharam-no em busca de uma causa edificante, um sinal de tragédia, martírio ou atentado que pudesse fazê-lo personagem daqueles enredos de faz de conta. Porque se é verdade  e muitos dizem  que faz sempre falta à realidade um pouco de fantasia, também dá muito jeito à fantasia, para melhor se compor, tomar alguns factos de empréstimo à realidade. Mas o pardalito, oh, era apenas um cadáver sem graça nem história, pronto a servir aos vermes. Com um ar todo de lamento e cerimónia, a imitar o que os adultos usam à beira de um caixão, foi o Eduardo quem assinou a autópsia: coitado, deve ter morrido de saúde

3.2.21

De alguma forma, todo o ato de desobediência tem a sua grandeza. As maiores conquistas civilizacionais e os mais preciosos direitos são devidos aos que recusaram acatar e calar. Mas quem perfeitamente se incrustou na ordem e no sossego doméstico considera que desobedecer é uma entre várias formas de revelar má criação, falta de princípios ou ignorância. Claro, a insurreição dá medo, rasteira os pés, puxa o tapete e sacode-o, mas, enfim, toda a evolução tem mácula, todo o parto é uma dor terrível que o bem que traz faz esquecer. A professora que vive com três gatos pretos e um ror de tralha acumulada também esquece a má vida dos poetas que venera como a deuses e a génese sombria, marginal, daquele verso pronto e acabado que agora docemente a conforta nos lençóis. Tudo dá no mesmo. 
Eu tenho um fascínio apaixonado pela desobediência quando a coragem moral a sustenta. O que desprezo é o desobediente indigno, borrado, manhoso, em causa própria e menor, sem peito nem bandeira. Envergonham-me, de uma vergonha que não devia sobrar para mim, as maroscas por indevidas vacinas, os clientes do restaurante que fugiram à multa pelo túnel de esgoto, a notícia, ainda fresca, de que Portugal perdeu lugar na lista de países "totalmente democráticos".