26.6.20

Gabi e a cabeleireira queimam o tempo livre com cigarros, posando como um par de jarras à entrada do salão vazio. Ao verem que passo sem propósito de entrar, embarcam nessa prática comum em certas mulheres – da qual nem se apercebem por ser já tique –, que é a de olhar as outras de cima a baixo, tirando todas as medidas e conclusões que as turbulências de uma imaginação mal aproveitada lhes ditam. Sorrio, consciente de que logo tomam como certeza o que quer que ocorra como suspeita. Mas diz-me a experiência que, no fundo, é sempre maior a tortura de quem engendra a história do que quem dela é personagem. E se há dias em que as personagens são elas, dias tem de haver em que quem descansa sou eu enquanto elaboram os outros a meu respeito. 

23.6.20

O cheiro áspero das sardinhas assadas, trá-lo o vento dos terraços, varandas e marquises onde hoje se faz a festa. Nem um santo se atreve a desautorizar o poder superior e chamar o povo para as ruas, misturando os seus odores, hálitos e suores. Não haverá baile nem cantoria nas pracetas ribeirinhas, nem despontarão paixões entre estranhos que se cruzem na ponte debaixo do fogo, nenhum beijo será dado ao acaso no embalo da folia e velhos conhecidos que desde o último ano não se viam resistirão à leviandade de um abraço. De martelinhos nem pio. Na rotunda, não virá com a brisa o cheiro de farturas, nem haverá ganapada aos encontrões, bêbados a cobiçar as nádegas das raparigas que jogam matraquilhos ou carteiristas de olho no bolso cheio dos estrangeiros. Não se ouvirão gritos de bravura nem promessas de amor no topo da volta da roda gigante. Pela primeira vez nesta data, as praias amanhecerão vazias. E na placidez rosada dessas primeiras horas, quando baixam no ar a temperatura e a melancolia, hão de circular devagarinho pela marginal os carros patrulha, certificando-se que a pretexto do santo não acamparam ali jovens amantes de circunstância nem ressacados sem pernas para voltar a casa. 
Mas amanhã, apesar dos esforços, todos seremos ainda mortais. 

22.6.20

O retomar dos velhos ritmos da vida e da cidade tem-me mantido desinteressada de escrever. Ignorando se e quando voltarei a ser privada do mundo lá de fora, do seu bulício, dos benefícios da civilização e do convívio com os que me são queridos, sinto-me agora como a adolescente acabada de se emancipar, sôfrega e inquieta, engendrando formas seguras de fazer, estar e acontecer, mas também desejando coisas mundanas, prazeres ligeiros e superficiais. Não me espanto de ver que todos estamos iguais, porque outra coisa não imaginei durante os quase três meses de reclusão. No jogo da futurologia nunca entro com uma dose de esperança superior à de que preciso para estar em pé. Pergunto-me, aliás, de onde terá vindo a ideia romântica de que deste susto global se havia de erguer uma humanidade renovada, finalmente distinguindo o acessório do essencial, mais dedicada à natureza e ao próximo, com mais apreço pelo tempo do que pelo dinheiro. Acredito que seremos todos cada vez mais polidos, porque mais censurados, vigiados, criticados, regulados, mas nunca seremos melhores do que ontem fomos.

19.6.20

Na papelaria comentam-se os amores e desamores das revistas cor-de-rosa, as paixões súbitas, os casamentos desfeitos, as trocas e traições. Entristecida, a rapariga abana a cabeça. Despreza essa realidade cujos brilhos mal escondem os dissabores e as desgraças, diz que o amor verdadeiro não é aquilo, é uma coisa para sempre, capaz de vencer os enguiços criados pelas rotinas da fama, as ausências prolongadas, até certos vícios e erros que o mundo não perdoa. O seu romantismo seria inofensivo e até gracioso se as velhas, que raspam sôfregas os cartões da fortuna, não lhe dessem um acabamento embrutecido com os clichés que aprenderam das suas mães, por sua vez aprendidos das avós e por ai adiante: que o segredo do amor eterno está nas cedências, na adaptação, em ir mudando para fazer feliz o outro. A rapariga indigna-se, arregala o olho, levanta o queixo, apruma o indicador, era o que mais faltava, quem me ama é como eu sou, não quer que eu seja antes assim ou assado, que me pareça com esta ou faça como aquela!
A mãe estava até agora calada, encolhida junto à fotocopiadora, a limpar-lhe manchinhas e poeiras com um modo distraído, de quem anda longe ou prepara alguma. Mas por qualquer razão que ao entendimento geral escapa, vemo-la de repente enfunar-se e, muito crua, muito fria, como se em inimiga da filha incarnasse ou quisesse ajustar contas muito antigas: 
– Ai é? Então diz-me lá quem é que te ama? 
Sorte a minha, que já tenho o troco, saio e livro-me de ver o coração da rapariga da papelaria sangrar em ferida aberta pela própria mãe.

16.6.20

Conta-me uma história sem ambição de explicar o mundo, que isso é tarefa para as pessoas vulgares. Conta-me uma que lhe puxe o tapete e o deixe sem pé. Sabes bem o gozo que tiro de ficar a ver se ele se aguenta, como sustém os seus falsos alicerces e com que fôlego respira. Aflita, acabarei, claro, por lhe deitar a mão e acomodá-lo-ei onde a minha lógica tiver uma vaga ou as verdades que conheço possam afastar-se um pouco para lhe dar chão. É para isso que me servem as histórias que ouço e leio, para me dar conta dos espaços que ainda tenho em branco, reconfigurar a minha consciência das coisas, arrancar as estacas, desincrustar as pedras e os mofos, baralhar e repartir, mas jamais dar como terminada ou suficiente a visão humana, débil, rasteira, que tenho do mundo.

13.6.20

Se consideramos que os Homens bons podem ter grumos no caráter, porque não havemos de considerar também nos perversos um coração disposto à ternura e capaz de gestos de valor, ou que ambos sejam duas faces de uma só moeda, dois rostos do mesmo Homem? Quem inventou para o mundo esta divisão entre corruptos e inocentes, fracos e fortes, ladrões e honestos, traidores e leais, adúlteros e fiéis, doentes e lúcidos, que de forma tão básica e fútil compõe o nosso senso de justiça quotidiano? E esta veia que apurámos ao longo dos tempos e começamos a praticar com os próprios filhos assim que nascem, que reside na atribuição de castigo para uns e recompensa para outros, terá sentido algum se for sempre julgada a parte pelo todo e se em quem julga coabitam igualmente as duas faces? E de que aflições sofrem esses que por tudo e por nada se lançam a apregoar a própria moral dizendo eu seria incapaz de tal coisa, como se quem quer que seja algum dia desta vida chegasse a saber ao certo tudo aquilo de que é capaz?

5.6.20

– Acredite que lhe dou o desconto por ser uma senhora. 
Assim fala o senhor Pereira à viúva, tentando pôr água na fervura de uma desavença por causa do SUV mal estacionado. Está seguro de ter escolhido as palavras certas por entender que, não havendo flores ao alcance, a bajulação é o caminho mais curto para refrear o sangue de uma fêmea. A viúva até reconhece o hábito de largar o carro sem critério nem respeito, no meio da rua, em cima dos passeios, a morder as rampas, mas ainda assim abespinha-se com o despropósito do comentário. Avança e, antes de ofender as distâncias impostas, detém-se a olhá-lo com a sua firmeza curvilínea e cheia de brilhos, enquanto ele balouça nos calcanhares, de mãos nos bolsos. 
Mas eis que ela se encosta ao mercedes dele, levanta a saia, destranca as portas do inferno e convida-o a entrar. O senhor Pereira nem de um segundo precisa para se encher do maior dos entusiasmos, agarra-lhe a cabeleira negra e desata a apunhalar o ventre dela sobre aquele capô tão polido que não merecia servir o desvario. Enquanto a viúva larga a céu aberto o riso carmim e lhe espeta as unhas nas costas amarrotadas pela idade e pelo sol das latitudes tropicais, ele, todo franzido e com a língua de fora, parece um garoto esforçado em dar o passo maior que a perna. O escarcéu chama à janela a mulher que, ao ver o que nem nas capas dos meus livros, ampara o peito com a mão e, porque as forças lhe faltam, pede o auxílio de Deus num fio de voz. Mas Deus lava as mãos do resultado imprestável da sua criação e não vem acudi-la sequer com um leque ou uma aguinha açucarada. A imperatriz, que passa com Joaquim encaixado no quadril, ri-se e tapa os olhos ao pequenito porque não o quer já sabedor daqueles combates animais que o desejo propicia e nem sequer teria como explicar-lhe que dali pode vir felicidade ou até frutos benditos como ele. E as duas filhas do senhor Pereira, paralisadas de indignação à porta do prédio, amaldiçoam a raça masculina, essa espécie toda feita por igual – exceção feita aos seus maridos, uns companheirões. Mas aquele frenesi, pese embora o enérgico investimento do senhor Pereira, acaba por se extinguir sem que nenhum dos dois chegue a tirar vantagem. E a viúva, com um gesto de impaciência, quase pena, empurra-o: deixe lá, eu dou-lhe o desconto. 
Ah, nada disto, claro. A viúva e o senhor Pereira preservam a distância que os livra de todos os vírus e impulsos, confrontam-se apenas com os olhos e ela, talvez por saber que são vãs as discussões entre os que falam línguas diferentes, responde-lhe: 
– Que desilusão, que tremenda desilusão me saiu o senhor.

2.6.20

Nomear a orquídea foi quanto bastou para atrair a má sorte. Nada eleva tanto quanto a atribuição de um nome, é um gesto a favor da singularidade e contra o esquecimento. Além disso, com um nome pode viver-se uma história e Isabela também reclamou a sua. Mas, mais sensata do que a antecessora, não chamou a si a desgraça atirando-se de corola aberta ao primeiro que lhe exibiu artes de caçador. Outro caminho que não o da entrega irrefletida levou Isabela a experimentar a perda e a desolação.
Foi dito e mostrado aqui o esplendor em que se encontrava, atingindo em beleza e graciosidade um nível que a outra nem sonhou. E não se ficou pelo que viram. Isabela floriu com tal exuberância que a certa altura havia nos seus braços escancarados nem mais nem menos do que treze corolas, todas desenhadas com igual rigor e revelando ao toque a mesma macieza e aparentando a mesma candura. Ao chegar a este estado apesar dos meus descuidos e da minha indiferença, Isabela mostrou ter fibra e provou não serem disparatadas de todo essas máximas da autoajuda que apregoam a suficiência do amor-próprio na construção do sucesso. 
É sabido, porém, que qualquer virtude está sempre encostada à raia de um terrível defeito e que basta uma distração, um exagero, um deslumbramento, para que tudo vire o seu oposto, tal como a sobredosagem transforma em veneno o mais inofensivo dos remédios. Assim creio que terá acontecido a Isabela. Se o amor por si mesma primeiro lhe garantiu a sobrevivência, depois cresceu ao ponto de se transformar em vaidade. E quanto mais vaidosa, mais na sua beleza investiu, fazendo brotar novas flores, jamais satisfeita com as que já tinha. Sob o peso de tamanha florescência, duas das três hastes foram vergando, vergando, vergando, até que um dia quebraram definitivamente, deixando Isabela reduzida à haste principal, numa beleza minimalista que, depois de tanta opulência, até parece miséria. Em números – para quem assim prefere medir a amplitude das desgraças – traduz-se a coisa em dez corolas caídas no chão da minha sala e três sobreviventes e viçosas, na haste de origem.
Tentei salvar as hastes quebradas enterrando-as diretamente no vaso, com esperança de que elas larguem a firmar raízes na busca instintiva de alimento. É isso que hoje mostro, para que se testemunhe não só a abundância de flores que Isabela deu ao mundo como também o meu esforço em recuperá-las. E fica claro que embora eu me preste muito a fantasiar sentimentos, tenho realidade que baste para não ter de aldrabar nos factos.
Sei que devia ter educado o crescimento de Isabela com a ciência disponível no google. Por isso também desta vez vou chafurdar na culpa, banhar-me na sua lama agridoce e reservar para mim mesma as mais cruéis palavras de desprezo. E assim, caso alguém pretenda censurar-me, saiba que já vem tarde.