Num destes serões tropicais a que a Invicta nunca se habitua e que mantêm humanos e bicharada cativos de um sentimento de desistência, como se por mais nada, além de respirar, a vida valesse a pena, a rapariga da papelaria disse ao homem maduro, sem qualquer preparação: desculpa, mas não é isto que eu quero para mim. É quase sempre assim a crueldade: um golpe seco, sem cerimónias, escudado no falso pretexto de abreviar a dor. A bondade — dizem — costuma ser mais trabalhosa, impõe algum brio e sensibilidade, é preciso escolher a hora certa, amaciar bem os humores do outro para que não lhe sobre vontade de desdizer os factos.
Porém, é sabido que aquilo a que alguns chamam de bondade é, muitas vezes, capa de disfarce do medo e que os cuidados que temos não servem senão de amparo ao nosso próprio desconforto. E, de resto, a verdade é que as palavras inúteis atrasam o mundo e quanto mais tempo nelas nos perdemos, mais adiamos a realização do fundamental. Portanto, agora importam menos as razões de tão seco e breve golpe do que a causa e as urgências que levaram à decisão de rutura.
Estranha-se muito (e não é a primeira vez que disso se fala) que o amor se tenha revelado, para a rapariga da papelaria, muito aquém daquilo que imaginou. Ao invés de uma sublime realização, aquela a que todos os românticos aspiram e pela qual sofrem, sangram e versejam, o amor mostrou-se, afinal, uma forma pálida, desengraçada, onde a paz e a segurança excederam o sobressalto e a vertigem e, assim, deixou de dar prova de grandeza. A conquista do homem maduro, que parecia impossível dada a longevidade e o estado de cristalização do casamento, reavivara, na boca dela, um gosto que já vinha de trás, do pai de Alicita e sabe-se lá de que outras paixonetas: o gosto pelo impossível, pela dúvida, pela iminência do abandono, pela febre e pela autocomiseração. Lembremo-nos que foi apontada por se prestar ao papel de amásia, depois acusada de desintegrar famílias, mais tarde insinuaram que não passava de um fundo de reserva para um homem cujo casamento já andava há muito pelas ruas da amargura, mas que jamais lhe poria fim se não tivesse outra a quem se agarrar logo na primeira noite. Mas o sabor da vitória que se seguiu a toda esta desarrumação emocional não esteve à altura. O homem maduro ao seu lado, amando-a e deixando-se amar por ela com tantas certezas e de forma tão leve — uma pasmaceira.
Desculpa, mas não é isto que eu quero para mim.
(ao cabo de duas semanas de observação, apercebo-me que, ao contrário dos outros gatos, Rasputin não vem para comer. Fareja, estuda, intui, mas não toca em nada do que lhe ofereço. Rasputin vem em busca das minhas sombras e nelas se deita, à confiança, para uma soneca. Por vezes, ao chegar a casa, até o encontro aninhado na soleira. Quero acreditar que me espera, mas logo me deixo de ilusões ao vê-lo afastar-se, ligeiro, sem disposição para se dar, assim que violo a distância mínima de segurança. No dia seguinte volta. Isto, que a mim cansa e desinteressa, isto é o que a rapariga da papelaria quer para ela.)