Cada um teve o seu agosto e o meu foi intelectualmente miserável, fútil e preguiçoso. Andei a arrastar o espírito pela superfície das coisas e não peguei em livros a não ser para os emprestar ou mudar de sítio. Não lamento ou sequer me envergonho. O calor tolhe-me o raciocínio e leva-me cedo para a cama, faz-me desinteressada e desinteressante, sem tolerância aos esforços e à complexidade. De inverno vivo mais atenta e criativa.
O meu vizinho saiu esta manhã de calça bege, camisa azul-clarinho e sapato castanho, que é a farda dos homens ajuizados e comprometidos. Durante mais de um mês não lhe pus a vista em cima. Também teve direito ao seu agosto, há de ter aproveitado para pôr em dia as leituras e o sexo, gastar as solas nos passadiços, regar bem o marisco com alvarinho, levar o diabrete às cavalitas e aferroá-lo com cócegas, prender o cabelo da mulher atrás da orelha para rever a sua face esquecida.
A rapariga da papelaria arrancou do calendário a página de agosto sem ter tirado vantagem. Porta aberta de segunda a domingo, manchetes novas escancaradas na montra todas as manhãs, a fila para os jogos da sorte nem perdeu espessura. Agosto não abranda a rotação da terra nem deixa em repouso as desgraças e os vícios. As férias de Alicita com o pai ficaram em águas de bacalhau, porque a madrasta entrou no último trimestre de gravidez e agravaram-se-lhe as cismas a vírus, fungos, bactérias, amigos e parentes. Ninguém lhe vê um pé fora de casa. A rapariga da papelaria pede contas, como é que é?, a menina precisa e tem direito às férias com o pai, mas ele apresenta um rol de desculpas e razões com eloquência, afinal, é um malandro, sempre foi – garante a avó –, e malandro que preste usa quase tão bem o verbo como as mãos.
Para a professora que vive com três gatos pretos e um ror de tralha acumulada, agosto já era e pronto. Ainda esteve para se meter num avião e visitar o rapaz em Barcelona, mas tem andado mal das costas e da cabeça, falta-lhe o apetite, formigam-lhe as mãos, o chão foge de manhã ao levantar – enquanto desabafa expulsa o fumo do cigarro em todas as direções, pede um éclair e cai como pasta mole na cadeira da esplanada. Há de vir ele cá no Natal, passa num instantinho. De qualquer maneira o mundo está do avesso, antes vale não sair do seu canto, tem de poupar forças para a nova turba de adolescentes desrespeitosos, alienados, incultos, a quem vai meter na cabeça, pela repetição, as regras, medidas e recursos que domesticaram a loucura do poeta na hora de estender o verso genial.