6.10.20

É uma dessas manhãs em que, sem outro motivo além da consciência de existir, venho pela rua a fazer o inventário dos meus privilégios, cantarolando, exercendo a vida com tudo o que por sorte me foi dado ou por empenho conquistei. Por isso é grande a estocada quando vejo a mãe dos filhos com olhos de azeitona preta, que não via desde que nos fechamos todos em casa. Vai sozinha, ao contrário do hábito. Durante anos e anos fez aquele percurso a carregar duas crianças, mais tarde carregando uma e arrastando outra, ultimamente apenas de mão dada com a menina, porque o rapaz seguia à frente, apressado para ser homem. Do bairro à escola, da escola ao bairro, numa comovente obediência ao seu destino, aquela mãe precoce a quem nunca escutei uma palavra, de pernas grossas e joelho valgo, que todos os dias enviúva do mesmo delinquente, jamais se atrasou ou fez outro caminho. Porém, os filhos com olhos de azeitona preta prescindem agora do abrigo e da boleia do seu corpo. Cresceram, estão expostos às próprias possibilidades de corrupção e infortúnio, são jogadores autónomos na lotaria da vida, vamos esperar que encontrem um caminho para lá da miserável condição em que nasceram.
Chego a casa e não tenho apetite. O mais velho preocupa-se, o que tens? E quando digo quem vi pede-me que não conte, pois sabe que também pousará os talheres. Ah, felizes os que andam entretidos na sua roda viva e dormitam na sua quietação murada e praticam opiniões diante dos cortejos televisivos e só conhecem a tragédia de a folhear em verso e salivam sobre a fartura das suas mesas e doam os excessos porque precisam de limpar armários. Aproveitem, porque a felicidade que há no mundo é pouca e distribuída de forma mais desigual que o dinheiro. Têm-na toda os deuses e um ténue vislumbre dela os humanos.