Da maneira que isto está, já deviam ter-nos mandado todos outra vez para casa, diz a professora que vive com três gatos pretos e um ror de tralha acumulada, enquanto toma o café em goles lentos, a máscara suspensa numa orelha, o ar sedado do costume.
Consigo facilmente imaginá-la trancada por longos dias, do quarto para a sala, da sala para a cozinha, da cozinha para a sala. O silêncio alivia-a tanto que se emociona. Nas cristaleiras tinem serviços de pechisbeque, souvenirs das férias pela Europa com o ex-marido e o rapaz, objetos avulsos sem serventia, porta-chaves, moedas de escudo, esferográficas secas, rolos fotográficos, pins. Nos armários, jogos de lençóis coçados, fronhas sem par, vestidos e casacões que deixaram de servir depois da cirurgia, roupa de quando o rapaz era pequeno, fantasias de carnaval, chapéus de inverno, de praia e de chuva. Nas estantes, os peixinhos-da-prata banqueteiam-se na desarrumação das capas de dossier, cópias de fichas e manuais, faturas, cartas, comprovativos, requisições, calendários, agendas, cadernos de receitas, álbuns, jornais velhos, revistas de moda passada. No chão, literatura em montículos de dúzia serve de mesa de apoio a candeeiros, velas e correspondência por abrir. Ela contorna tudo com a sua obesidade cinzenta e um desalento clinicamente comprovado, sem tropeçar nos gatos que lhe rodeiam os tornozelos a cobrar festas.
Ainda em jejum, acende um cigarro, mira o prédio defronte, o alinhamento das marquises traseiras, as roupas abertas nos estendais, os vasos desbotados pelo sol, o padrão exposto das vidas comuns. Afaga os bichos por hábito e instinto, põe-lhes comida, recolhe as fezes. Almoça lasanha requentada e uma maçã para limpar. Liga ao rapaz, que agora vive em Barcelona com uma irlandesa de humor magnético e tão elegante que mete nojo. Enquanto toma café na varanda, roga pragas aos que desafiam a autoridade e saem à rua, deviam ter sido educados com mão firme, o mundo assim não vai a lado nenhum. A professora esqueceu quão insurretos, sujos, torturados, viciados e imensos foram os autores dos poemas que leva para os alunos e que não lhes interessam porque ela não lhes conta das fragilidades, não lhes diz que eram pecadores, que tinham pesadelos e desejos ingovernáveis. Fala deles como deuses e a juventude não precisa de religiões.
À noite, com os dedos muito ágeis entre as coxas, a professora fantasia versões alternativas ao amor que conheceu e lhe falhou. Para descolar da memória a imagem dos adolescentes eufóricos, cheios de ganas e saúde, lembra versos censurados de Bocage – ao menos é Bocage. No fundo da cama, os três gatos pretos assistem à demora do êxtase.