3.11.20

Durante o confinamento, naquele março que vai tão longe, uma das coisas que mais me assustou foi ver quanta gente havia satisfeita com o silêncio do mundo e elaborava tratados românticos, doces, quase felizes, sobre a clausura. Cheguei a ouvir a alguém dizer que sonhara a vida toda com um momento assim. Tive mais medo destas pessoas, todas juntas, do que de cada reajustamento que o governo fazia às medidas aplicadas. Incapazes de ver para lá do seu conforto domiciliário, da sua despensa farta, do seu aqui e agora, mostraram como a voz do egoísmo, além de sentimentaloide, consegue ser despudorada. Redimiam-se picando o ponto na varandas para cantar loas ao pessoal dos hospitais ou apiedando-se dos velhinhos, que precisavam de tudo - e de tanto! - menos de piedade. 
Com o tempo fui notando que a generalidade dessas pessoas que faziam o elogio do isolamento enquanto brincavam ao neolítico amassando pão e congratulando-se com a descoberta de aromas florais e passarinhos, não tinham filhos ou os tinham já graúdos e dispersos. Por isso se marimbavam para o abalo do mais nobre e estrutural dos pilares de uma sociedade que se quer próspera: a educação. Também intuí que boa parte delas teria laços frouxos com a família, que os seus amigos seriam habitualmente ausentes ou mesmo inexistentes e talvez tirassem consolo de pensar que, por uns tempos, ao invés de uma sentença pesada, a solidão podia dar-lhes a grandeza de um sacrifício, o brio de um ato heroico. 
A certos iluminados ocorreu que houvesse uma mensagem do universo, essa entidade que os gurus da autoajuda têm vindo a descredibilizar. Eis a oportunidade de reverter o mal feito ao planeta e a nós mesmos, assim diziam muitos, travestidos de uma humildade forçada e verborreica. E até a mim, que sou simpatizante de Buda e tenho rituais diários de meditação e yoga, esta ideia soou a bugiganga espiritual. Mas serviu de pretexto para a reprodução desenfreada de sermões sobre como os outros se haviam portado muito mal ao preterir os afetos e a solidariedade em favor do consumo e do descarte. 
Pareciam pouco importados com a evidência de que a sociedade começava nesse instante a resvalar. Que a órbita do mundo seria redesenhada, sim, mas não no sentido do retorno àquilo a que chamavam as coisas essenciais sem noção de que falavam de privilégios e que ofendiam uma parte considerável do país e da humanidade: o livro lido com vagar, a paisagem silenciosa apreciada do terraço, a perceção das unidades de tempo, o aroma do café de saco. Na perspetiva estreita de quem tinha os empregos salvaguardados pelas circunstâncias ou pelo Estado e um bom seguro de saúde, eram estas, e outras similares, as coisas essenciais. 
Agora que novas restrições se anunciam, tudo isto me vem à memória e sei, tenho a certeza ou quero tê-la, de que quem viu desta forma romântica uma tragédia com tantas, tão amplas e tão duradouras sequelas, agora sabe mais, tem outra perspetiva, é capaz de mais empatia e de uma solidariedade mais genuína. Ou, se nada disto, ao menos mais pudor.