7.7.20

É difícil definir as causas e até os instantes que precipitam a avalancha. Basta que seja realmente suspensa a engrenagem por uns segundos. Não me refiro ao trânsito, às lojas, aos restaurantes, que esses já respiram moribundos, mas a tudo o que dá corpo à certeza de que, apesar do muito que se adia, o essencial se preserva: o fluxo intenso de trabalho, o amor com os miúdos, o banho diário, o ciclo menstrual, os asanas, as faturas, o lume brando na cozinha, o chocolate, o avanço nas páginas dos livros, as mensagens que chegam de longe, como parece que todas agora chegam. Quando tudo isso pára ou, não parando, é pensado como coisa concreta, avulsa, no seu devido lugar, o lugar do que consola mas não salva, como facto que é o que é e o que pode – e pode pouco – começo a fervilhar, prendo o cabelo, calço as sapatilhas e faço os caminhos desertos ao redor da casa, dou voltas ao quarteirão, desço e subo passeios. E para caminhar mais depressa invento que a minha fúria é contra a calçada e o asfalto, e que a saudade que tenho é do que vem depois da esquina, da rotunda, da papelaria, do pão quente, da praceta, da alameda, mais adiante, sempre mais adiante. Ou imagino que o perigo me persegue a passos largos sem me lembrar do que sei tão bem – que o perigo verdadeiro nunca vem atrás, espera-nos à frente, mudo e quedo, quantas vezes incrustado na geometria do mais plácido e belo de todos os horizontes.
Volto para a casa aceitando, como um ratinho de gaiola, que dei vinte giros na roda sem ir a lado algum. E então lamento por todos os que fazem o mesmo que eu e desperdiçam a energia a rugir como leões.

* Abril 2020