28.4.20

Para fazer de mim uma boa católica, a minha avó contava-me sobre o trágico destino de todos os que provocaram a ira de deus ou puseram em causa o seu bom nome. Na maioria das vezes contava na cozinha, enquanto descascava as batatas para a sopa ou estalava a cebola no azeite. Mas em certos dias fazia-o com mais gravidade, sentada na arca grande do hall, uma arca de madeira escura, maciça, toda trabalhada, onde envelheciam serviços de jantar e outras relíquias. Aí, na penumbra, enquanto eu baloiçava os pezinhos a dois palmos do chão, ela desfiava um rol de desgraças verídicas cujo rumo teria sido oposto se houvesse um bocadinho mais de temor a Deus, respeito a Jesus Cristo e devoção Nossa Senhora de Fátima. A única de que me lembro, porém, é a do homem que menosprezou o poder divino durante uma violenta trovoada e cerrou o punho, apontando-o aos céus e rugindo uma ameaça: “Ele que atire cá pra baixo que eu devolvo lá pra cima”. 
Ao contar isto a minha avó franzia-se toda com a emoção, gostava de enfatizar as histórias, trazê-las ao presente, fazer-me sentir o medo, a mágoa, a raiva que a consumiam. Eu, deslumbrada com tamanha ousadia, e depois? Ah, depois, só de lembrar arrepiava. Veio do céu uma coisinha, disparada como bala em direção ao homem. Mas que coisinha? Era um brilhante assim deste tamanho, e definia-o com o polegar e o indicador, o rosto muito impressionado como se tudo estivesse ali outra vez. O brilhante surgira de forma tão rápida e era tal o seu fulgor, que os que testemunharam – e não foram poucos – ficaram assombrados. E vendo como certo que deus era autor e remetente do fenómeno, redobraram o temor que já lhe tinham. E depois? Não souberam mais, porque correram todos a abrigar-se e cada um acendeu velas e rezou o quanto pôde debaixo do seu telhado. Mas o que era, afinal? E com os seus lábios rugosos, sempre trespassados de lamentos e tensões, a minha avó respondia: fosse o que fosse, era o castigo merecido.