27.4.20

Saio para me sentar num banco da alameda com um livro que não tenho intenção de ler no momento. Noutros tempos, a esta mesma hora, era certo que começando eu a descer a rua a mulher do senhor Pereira a subiria, na volta do pão quente, com uma roca a fumegar e meia dúzia de docinhos para consolo do espírito domingueiro e preguiçoso. Se viesse sozinha, teria os sentidos vivos como um animal de mato e avançaria com a segurança que lhe falta quando o marido a traz ao dependuro num braço. Curiosa sobre o meu livro, recuaria para focar e, de testa franzida, do que é que trata? para logo, sem surpresa para mim, desdenhar. Por ter os horizontes embaçados e o hábito de julgar pela capa, voltaria a insinuar que tenho tendência para ler obscenidades. E com o olhar à roda pelas periferias da visão, como num filme de terror, deixaria escapar um suspiro, um lamento, um desabafo entredentes sobre as inconveniências desta vida. Depois, como se lhe faltasse tempo para essas coisas menores que são a literatura e o amor carnal, causas de enguiços quotidianos e acidentes familiares perfeitamente evitáveis, usaria o argumento dos muitos afazeres domésticos para se despedir a correr. E então eu, receando que alguma reviravolta acontecesse no mundo ou por qualquer castigo, mistério ou desgraça não voltássemos a ver-nos tão cedo, segurar-lhe-ia no braço a dizer: não, sente-se aí e conversamos um bocadinho.