11.3.20

Há quem discorde mas eu acho o Porto na mesma. De manhã, não lhe noto mudança de ritmos, modos ou feições, o trânsito escoa com a lentidão habitual, a rádio anuncia os trombos de sempre no nó de Francos, na saída da VCI para o Campo Alegre, no túnel de Águas Santas, os toxicodependentes envenenam-se debaixo do viaduto, as crianças formigam à entrada das escolas, o metro segue apinhado, faltam lugares para estacionar. Porém, na empresa cheira a lixívia por todo o lado. É um produto que não uso e cujo cheiro me dá náuseas, abro as janelas para respirar mas há sempre quem proteste por medo das correntes de ar. A cada dez minutos, os meus colegas desinfetam as mãos e fazem refresh à página das notícias. As reuniões são rápidas, não há conversas paralelas em sussurro, decide-se o essencial em tempo útil. Muitos de nós, se quisermos, estamos autorizados a trabalhar a partir de casa, mas eu escolho ficar, agrada-me a vida de qualquer modo, adiarei o cárcere e a solidão enquanto puder, tenho idade e saúde para isso. Quando saio, passo no supermercado porque o leite dos miúdos está no fim. As prateleiras foram varridas, uma mulher leva dezoito embalagens de grão de bico e um velho açambarcou todas as caixas de minis e casal garcia que couberam no carrinho. Quando me dá o troco e o talão, a funcionária da caixa diz-me que tudo corra bem consigo, meu amor, adeus, com o tom de um soldado a despedir-se dos companheiros de trincheira antes de enfrentar o inimigo. Faz-me falta o meu pai e a sua superior inteligência e lucidez no modo de explicar o comportamento desta bicharada ruim e invisível. É ele quem procuro imitar quando alerto os meus filhos para os vírus e para os perigos letais da ignorância, da perversidade e da histeria.
De resto, estou bem. Nada ameaça as partes de mim que te desejam.