9.3.20

Ao fim da manhã de ontem, o senhor Pereira descia a rua com o saco do pão, um bouquet de rosas cor de sangue mais o jornal entalado numa axila, prestes a cair. Vendo-o aflito, a contorcer-se e a sussurrar esconjuros não sei a que demónios, acudi-o amparando o jornal e ele, grato, fez-me a festa do costume. Contou-me depois, enquanto suspirava os seus cansaços e alívios, que só por um triz se safou de aborrecimentos com a mulher. Esquecido da data, porque ao domingo se uma pessoa repousa é para repousar por todo, até nas ideias, nada tinha comprado para lhe oferecer peloito de março. As filhas podiam tê-lo lembrado mas, enfim, a juventude menospreza esses pequenos agrados que mantêm o laço do casamento apertado até à morte e é por isso que as coisas andam da maneira que se vê. O que o salvou, então, foi a insistência da mulher para que lhe fizesse o favorzinho de ir à rua buscar meia dúzia de carcaças, já que a chuva miudinha podia dar cabo do trabalho que, na véspera, a cabeleireira lhe fizera. Foi contrariado e ao chegar ao pão quente fez-se luz, não propriamente por obra do acaso ou do divino mas porque se cruzou com a viúva e ela, magnífica como é uso, faça sol ou faça chuva, em dias úteis ou inúteis – a menina não concorda? –, perguntou-lhe se já tinha mimado a mulher. Num repente, o senhor Pereira desatordoou o cérebro, que vinha naquele sono domingueiro a que um homem – caramba! – tem direito, e correu à florista adiante da rotunda, de porta aberta e escancarada desde as nove em benefício dos pereiras desta vida. 
Agora, a caminho de casa, deitava as mãos à cabeça só de imaginar as consequências que a sua distração poderia acarretar, sem saber a quem mais devia a sua gratidão: se à mulher por tê-lo obrigado a sair, ou à viúva, tão atenta e preocupada. Num ou noutro caso, tinha assegurada a sua paz por largos dias, até semanas, lá em casa. Altura ideal para pedir um arroz de cabidela e talvez continuar adiar a verificação do aplique que anda com mau contacto, sem que daí venham lamúrias e problemas.
– E a menina, alguém lhe ofereceu flores hoje?
– Ah, a mim não, senhor Pereira. 
Ele redistribuiu com mil cuidados a carga que levava, endireitou as costas e antes de se despedir:
– Não me leve a mal, mas a menina se calhar também não faz por merecer.