26.8.25

Entre fraquezas e pecados, todos os dias descubro coisas a meu respeito que os inimigos adorariam saber. Infelizmente, não creio ter inimigos, não tenho poder bastante para os atrair e merecer, nada do que sou incomoda, nada do que realizei ofende, nada do que digo fere. Sou praticante de insignificâncias, tenho um palminho de cara, boas maneiras, o tempo é o meu luxo e a minha maior virtude é duvidar. Alguém se levantaria contra isto?

25.8.25

Agosto já começou a abreviar os dias. Esgota-se o tempo da sensualidade e do esquecimento, da fartura e da desvergonha. Extingue-se o fogo e o furor — o quanto deixámos por arder, arderemos no ano que vem. Ao longe, a gritaria dos adolescentes que em bando desarrumam o quotidiano, baralham as horas e metem medo aos velhos, opõe-se até onde pode à responsabilidade. Mas por que raio o mundo há de ser tão urgente? As mães afoitam-se nos grupos de mães; a mais concorrida e infeliz de todas competições já chama por elas e todos os inocentes serão arrastados. Só os homens são iguais o ano inteiro.
Do resto do país não sei, mas o Porto, que sempre com tanta prontidão modula os seus humores, já acinzentou. Cheira a melancolia, cheira a casa, cheira a terra e a saudade. Setembro acena, como o pai a chamar o filho à razão no término da hora do recreio e a estender-lhe o casaquinho para que não seja apanhado assim, tão exposto e distraído, na curva apertada da realidade. 

20.8.25

A minha relutância ao uso de perfumes e fragrâncias não é só visceral, sensual, é também sentimental. Estranho muito que se atribua aos perfumes responsabilidade pelo charme e boa imagem individual ou que sejam considerados recursos de sedução, mais ainda que se usem para mascarar odores naturais. Frascos produzidos em série e colocados no mercado aos biliões, consoante modas, correntes, tendências, mitos, narrativas e estratégias, não personalizam, antes diluem a originalidade, a graça e a memória que cada um deixa.
Ontem, às compras no pingo doce, voltei a comprová-lo quando senti o cheiro do teu perfume. Paralisei, primeiro, depois não resisti e lancei-me na busca da sua origem, farejando devagar, arrastando o passo, simulando interesse em produtos que não pretendia, indo e vindo de acordo com a impressão de proximidade ao aroma. Inebriada, seduzida, abrandei no talho e, para ganhar tempo, dei comigo a estudar minuciosamente os escalopes de novilho, os hambúrgueres de picanha, os lombinhos, o entrecosto, as febras — o teu perfume cada vez mais perto  — , os peitos de frango, os bifes extrafinos, as coxas, as asas, os miúdos, parei nas espetadas de peru, certa de que era ali, e escutei a voz simpática do repositor de carnes: a senhora precisa de ajuda? 

18.8.25

Num destes serões tropicais a que a Invicta nunca se habitua e que mantêm humanos e bicharada cativos de um sentimento de desistência, como se por mais nada, além de respirar, a vida valesse a pena, a rapariga da papelaria disse ao homem maduro, sem qualquer preparação: desculpa, mas não é isto que eu quero para mim
É quase sempre assim a crueldade: um golpe seco, sem cerimónias, escudado no falso pretexto de abreviar a dor. A bondade  dizem  costuma ser mais trabalhosa, impõe algum brio e sensibilidade, é preciso escolher a hora certa, amaciar bem os humores do outro até que não lhe sobre vontade de desdizer os factos. Mas é sabido que aquilo a que uns chamam de bondade é, muitas vezes, capa de disfarce do medo e que os cuidados que temos não servem senão de amparo ao nosso próprio desconforto. 
De resto, a verdade é que as palavras inúteis atrasam o mundo e quanto mais tempo nelas nos perdemos, mais adiamos a realização do fundamental. Portanto, agora, mais do que as razões de tão seco e breve golpe, importam a causa e as urgências que levaram à decisão de rutura.
Estranha-se muito (e não é a primeira vez que disso se fala) que o amor se tenha revelado, para a rapariga da papelaria, muito aquém daquilo que imaginou. Ao invés de uma sublime realização, aquela a que todos os românticos aspiram e pela qual sofrem, sangram e versejam, o amor mostrou-se, afinal, uma forma pálida, desengraçada, onde a paz e a segurança excederam o sobressalto e a vertigem e, assim, deixou de dar prova de grandeza. A conquista do homem maduro, que parecia impossível dada a longevidade e o estado de cristalização do casamento, reavivara, na boca dela, um gosto que já vinha de trás, do pai de Alicita e sabe-se lá de que outras paixonetas: o gosto pelo impossível, pela dúvida, pela iminência do abandono, pela febre e pela autocomiseração. Lembremo-nos que foi apontada por se prestar ao papel de amásia, depois acusada de desintegrar famílias, mais tarde insinuaram que não passava de um fundo de reserva para um homem cujo casamento já andava há muito pelas ruas da amargura mas que jamais lhe poria fim se não tivesse outra a quem se agarrar logo na primeira noite. E, afinal, o sabor da vitória que se seguiu a toda esta desarrumação emocional não esteve à altura. O homem maduro ao seu lado, amando-a e deixando-se amar por ela com tantas certezas e de forma tão leve, tão real —  uma pasmaceira.
Desculpa, mas não é isto que eu quero para mim. 

(ao cabo de duas semanas de observação, apercebo-me que, ao contrário dos outros gatos, Rasputin não vem para comer. Fareja, estuda, intui, mas não toca em nada do que lhe ofereço. Vem em busca das minhas sombras e nelas se deita, à confiança, para uma soneca. Por vezes, ao chegar a casa, até o encontro aninhado na soleira. Quero acreditar que me espera, mas logo me deixo de ilusões ao vê-lo afastar-se, ligeiro, sem disposição para se dar, assim que violo a distância mínima de segurança. No dia seguinte volta. Isto, que a mim cansa e desinteressa, isto é precisamente o que a rapariga da papelaria quer para ela.)

14.8.25

Debaixo da minha janela de agosto, a desoras, passam conversas de um lado para o outro. Casais, amigos, famílias, amantes, adolescentes, companheiros de circunstância, sejam o que forem, têm enchido o meu bloco de notas com estes comentários:

Podes vir tu, pode vir o presidente da república, pode vir o papa, pode vir deus, pode vir o caralho... olha, até pode vir a Cristina, que eu não vou mudar de ideias.
(supondo que a intenção fosse uma ordem crescente de poder, não tenho pensado noutra coisa: onde encontrar a Cristina?)

*

Estou casada contigo há quinze anos e tu nada, nadinha, nunca! Nem uma tostinha mista me fizestes...

*

— Na terra dos meus avós há uma ponte com mil anos. 
— Nossa, que país maravilhoso esse Portugal, 'cês deveriam se orgulhar.

*

Tu só tens de lhe perguntar: queres ou não queres? E a partir daí ele só tem duas opções: ou quer ou não quer. Isto parece muito básico mas é uma coisa que a maioria das pessoas não compreende.

*

— Ó Beni, tu és do signo peixes, pois és?
— Sou, porquê?
— Então deves ter ascendente em piranha.
— Estupor, só não te parto a cara porque tenho pena de ti.
— Tu? Pena de mim? 
— Sim, por seres touro com ascendente em corno manso.

*

Olha, uma coisa que eu aprendi na vida é que um gajo só com a mulher não se sabe governar. Das duas, uma: ou tem uma boa mãe ou desenrasca uma amante.

*

O meu filho tem muito boa índole, Sãozinha, e tu sabes. O que ele não gosta é de cumprir a lei.

*

— A única coisa que uma pessoa precisa na vida é uma luz. Uma pessoa tendo uma luz encontra os caminhos todos.
— Uma luz? Em que sentido?
— Uma luz. Sei lá, uma luz, a tua luz, a que tu quiseres.
— Tipo uma religião?
— Ó pá, uma luz, não sabes o que é uma luz?
— Sei, mas há muitos tipos de luzes.
— Esquece, tu complicas muito.

*

Estás outra vez com essa merda da conjuntivite? Não percebo, tudo o que te aparece de estranho, ou bem que é no olho de cima, ou bem que é no olho de baixo.
(muitos risos)

10.8.25

Com os olhos pregados no FlightAware, vigio o itinerário do rapaz voador como aos passos da sua infância, sabendo que em breve lhe perderei o rasto. Não tenho coração suficiente para as suas ganas, para os lugares remotos, marginais, onde se mete, sou tão cobarde que a sua bravura me asfixia. Choro como uma Madalena, arrependida da educação que lhe dei, antes tivesse posto às costas dele toda a minha carga de medos e ninguém havia de me julgar, porque aos primogénitos é hábito ser cobrada a continuação dos pais, a realização dos seus sonhos abortados, a compensação dos seus aquéns. 
O menino com cabelos de oiro velho e olhos de mar de inverno proporciona-me uma versão mais plácida da vida. Com ele o tempo ganha vagar e tolerância, estiro-me, dou-me às ligeirezas do corpo e do espírito, às vezes ouço-o elaborar acerca de coisas muito antigas, impérios, deuses, pedras, tesouros, tratados, conquistadores insanos, desastres sobre os quais já não podemos agir e assim fingimos que não devemos ao mundo mais do que pensá-lo  estudiosos, porém, desresponsabilizados. Mas sem o desassossego e a ambição do rapaz voador fico desfalcada, falta-me o contraditório, não há quem escancare as janelas e apresse as horas e conjugue os verbos no futuro e volte para casa espantado, a contar dos olhos gelados dos tubarões ou da malha caída por onde escoa a lucidez dos Homens. 
Que hão de fazer as mães como eu, cujos filhos em tanto lhe são opostos e se opõem entre si? Se um tudo busca saber, o outro só se contenta quando vê, e eu, que pouco sei e quase nada vi, vivo assim, desautorizada nesta triangulação amorosa, incapaz de os subjugar ao meu código genético e aos meus humores. Nem de um nem de outro jamais alguém dirá vê-se logo que és filho da tua mãe e por isso sei que, no dia em que eu morrer, morrerei mesmo.

9.8.25

Esta noite voltei a superar-me. Os doutores da psique e outros intérpretes de zonas subterrâneas muito apurariam, certamente, de tudo o que sou capaz de enredar quando estou sob a custódia de Morfeu. Mas, no grau de sofisticação a que cheguei, seria muito mais proveitosa para todos uma parceria com David Cronenberg.

7.8.25

Enamorei-me de um gato preto que vem quotidianamente dormitar nas sombras do meu jardim de agosto. Muitos outros vêm e a todos vou dando de comer e de beber mas, como é próprio dos gatos, nenhum consente aproximações ou se deixa ficar depois de saciado. Por mim está bem assim porque, de qualquer modo, não tenho, jamais tive, esse velho e vulgar fascínio pelos felinos, desagradam-me os trânsitos dissimulados, a postura egoica de quem dá por certos os aduladores, e o olhar fixo, que me trespassa a consciência e desafia para um jogo de propósitos ocultos. Também não vibro com os seus atos de insubordinação, tampouco me seduzem as elaborações em torno do mistério, da sensualidade e da dimensão psíquica que lhes atribuem. Entre o rol de espécies protagonistas do sobrenatural, agentes de magia e mensageiros lunares, prefiro de longe o lobo. Oposto ao gato, que tantos invejam pelo desapego, o lobo tem a nobilíssima virtude da lealdade, que aprecio sobre quaisquer outras. 
Mas este gato que dormita nas sombras do meu jardim de agosto, este gato interessa-me. Tenho deixado a porta de casa entreaberta  a mais gentil de todas as armadilhas  supondo que nele, como em mim, possa haver um instante em que a curiosidade supere a desconfiança. Um dia destes. E, embora nomear seja coisa que evito porque, de alguma forma, nomear é predestinar, decidi chamá-lo de Rasputin.