31.7.25

Por razões que pouco importam, dei comigo, esta noite, a lembrar o tempo do confinamento, das brincadeirinhas burguesas alardeadas nas redes sociais, era quem mais fazia pão, devorava livros e pregava a elevação da humanidade a um estádio superior, olhando as ruas vazias com uma espécie de romantismo trágico, cheio de pieguice e privilégio. Ligavam uns aos outros com lições de moral e afastavam-se entre si, como heróis, em nome de um bem maior, um bem comum, que os pivôs dos noticiários nutriam com sermões risíveis e insultuosos. 
Os avós dos meus filhos nunca deixaram de os receber. Recusaram-se a obedecer a esse paternalismo que encheu de culpas os corações das crianças e hipotecou a sensatez dos adultos ao ponto do abandono. Os avós dos meus filhos diziam que, de qualquer forma, estavam na reta final da vida e que a ideia de a passar longe dos que amam em troca de mais ou menos um ano neste mundo seria uma escolha absurda, desumana e, essa sim, egoísta. Até hoje, nenhum de nós se arrepende de ter confiado na medida urgente do amor e do afeto.

28.7.25

Não adormeças na curva humilde deste corpo, não faças do meu dorso travesseiro. Receio que o peso da tua vida me adoeça. Já bastam outras coisas muito minhas  medos que nunca venci a morder-me o fundo das costas, mágoas velhas a gemer nas dobradiças, ossos roídos pela fome insaciável daqueles que pari, sapos vivos que ainda queimam, atravessados, a boca do meu estômago. Se divido este corpo contigo é para honrar e celebrar a sua biografia. Então, que os teus dedos se esmerem na leitura das entrelinhas, que a tua língua suavize todos os cumes, abismos e vazios, que as tuas mãos nas minhas costas despertem as raízes de um par de asas, que uma investida tua me lance no voo primordial, feroz e urgente, e que, no fim, o teu peito se dê para que eu possa despenhar-me e chorar.

16.7.25

Onde estive e o que vi esta noite, não saberia contar sem parecer insana, vulgar ou causar repulsa. Por vezes, lamento tanto a insuficiência do código verbal e sinto remorso por não ter desenvolvido formas mais sublimes de expressão, que me permitissem representar o que intuo ou testemunho sem a contaminação das palavras. O meu sono tem um impulso criativo rebuscado que, uma vez desperta, me sinto incapaz de narrar. Sou, sem dúvida, uma sonhadora genial e afirmo-o de peito farto, com orgulho de ao menos aí chegar mais longe do que prevejo ou planeio. Mas com o tempo, por falta de registos, acabarei por esquecer toda a minha obra. 

15.7.25

Temo muito o bonzinho esforçado para que os outros o saibam. Não só se afigura um idiota – o que por si só seria relativamente benigno para os restantes mortais, na medida em que poderia propiciar alguma diversão –, como acaba a tornar-se um perigo. Investe no relato da pureza dos seus pensamentos, mas não sujará as mãos a defender causa alguma. A sua ética é profundamente romântica, porém desoladoramente estéril. Fica-se por uma espécie de moralismo de pantufas, em conversa de vão de escada, moderado e cauteloso, e entra em casa e tranca a porta quando a ameaça real espreita.
Então, podes dizer-me o que achas e daí tirarei a medida do teu sentimento. Mas se não me mostras o que fizeste, jamais terei a substância do teu carácter.

10.7.25

Ao balcão do pão quente, a professora que vive com três gatos pretos e um ror de tralha acumulada vaza a dor que ontem a abalroou com a fúria de um tornado e da qual ainda não se refez: propuseram ao rapaz um lugar no Dubai, regalias e caprichos à disposição, o sonho de uma vida, e ele, sem pedir conselho ou partilhar preocupações, aceitou. Antes do fim do verão, trocará Barcelona pela cidade do futuro.
Há filhos tão empenhados na destruição das mães! Começam desde logo no ventre, silenciosos e diminutos como parasitas, consomem-lhes o corpo, a lucidez, a memória, depois semeiam no espírito delas medos e pressentimentos, avariam-lhes os nervos em noites insones e guerras quotidianas. Pedem-lhes de empréstimo a existência, um dia — quem sabe? — hão de pagar em realizações, títulos, medalhas, brilharetes entre amigos e família e o mais que venha de consolo e recompensa. Mas mal lhes largam as saias, renegam tudo e põem-se a milhas.
—  Meta-se num avião e vá lá de visita, que hoje em dia a gente pomo-nos em todo o lado num instante. É ou não é, princesa?
Diante dos olhos da professora, a quem os comprimidos extinguiram há muito a centelha da curiosidade, a empregada do pão quente pousa uma bola de Berlim ainda morna. 
— A gente põe-se ou nós pomo-nos, tens de escolher —  corrige com a boca já cheia de uma dentada urgente, excessos de creme nos cantos, um pingo atrevido a afundar-se nos refegos da papada. Faz-lhe jeito a desconversa, poupa-a de admitir que o corpo assim vagaroso, pesado, incompetente para a vida, distorce as métricas da distância e, nessa geografia plástica, o Dubai fica para lá de todas as vontades. Haviam de dizer dela o quê? Que não presta como mãe, que tem um coração árido ou, pior, que a ausência do rapaz é a retribuição pelo desleixo amoroso em que foi criado. 
Mas a empregada do pão quente insiste:
— A sério, vá. E traga chocolates, princesa, traga chocolates.
As palavras têm na professora o efeito de um estimulante. O queixo levanta-se, os olhos acendem-se e a resposta sai pronta, rigorosa, quase automática:
— Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates. 
— Não percebi, princesa. 
Mas porque, a esta altura, a professora ri com um inesperado prazer, a empregada larga também a rir, embarcando na graça às cegas, por puro contágio. Vai crescendo em ambas o vigor do riso, uma a rir de uma coisa, outra de outra e, às páginas tantas, ambas a rir sem saber do quê, a professora em convulsões silenciosas, mal aguentando no corpo o ímpeto daquela espécie de felicidade, a empregada a atrapalhar-se toda na contagem dos moletes e uma fila de gente em suspenso, a prolongar-se até à esplanada. 
— Juro, princesa, juro que não percebi nadinha de nada...