Fui esta noite a Barcelona recuperar a inscrição na escola de dança e mudar de vida. A primavera dá-me sempre estas ganas de partir. Não sinto a exaltação de certas vontades que dizem próprias da época, como arrumar, limpar, acasalar, renovar, dar à luz. Tenho antes vontade de ser outra coisa noutro lugar, não porque o que sou, onde sou e como sou me seja fonte de infelicidade, mas por um impulso migratório desprovido de planos, em cujo destino não caberiam os meus filhos, a minha história, a minha língua, o meu ofício. Há os que são curiosos por ver, cheirar, fotografar outros lugares, eu tenho a curiosidade pelas vidas que não escolhi ou não me couberam em sorte. Mas sobre isto dispenso análise, opinião ou conselho, e por isso regressemos a Barcelona.
A orientadora do curso acolheu-me com mais condescendência do que entusiasmo. Ainda sabia, de memória, todas as peculiaridades do meu corpo mas também, infelizmente, as do meu feitio. Posso ficar? perguntei, uma alma desaninhada, suplicante, de mão estendida. Oh, querida, também não é preciso chorares. E autorizou-me a matrícula, sob o compromisso de eu me esmerar nos trabalhos escritos e nas avaliações teóricas para compensar a deterioração dos pés e a ferrugem nos adutores. É possível que ela ainda se recorde de quando eu passava a perna para trás da cabeça, em todo o caso, de que serve o que já tenha feito se for incapaz de o repetir? As artes do corpo não se expandem por efeito de acumulação, como o conhecimento ou a experiência. Ao contrário, esgotam-se no instante em que se exibem. O tempo é sempre um inimigo e dá instruções de recuo muito precisas e localizadas. Cada proeza acabará por resultar invariavelmente numa perda, um desbaste, uma dor, uma amputação.
Márcia, uma rapariga exótica de olhos rasgados, pele de bronze e cabelo de azeviche, que, tal como eu, veio resgatar uma vida passada, adiantou-se a dar-me guarida se eu prometesse fazer-lhe uma francesinha todas as noites. Vamos ver se consigo, tenho tanto, tanto que estudar! E já não me lembrava de estar tão feliz num sonho.