11.10.22

Nada foi aqui dito entretanto, mas a verdade é que já faz quase um ano que nasceu o irmão de Alicita – ou meio-irmão, para evitarmos cutucar os nervos da rapariga da papelaria. Deram-lhe o nome de Álvaro, já que a mãe viu muita graça na aliteração como reforço da consanguinidade, coisa que, aliás, se tem tornado frequente em certas famílias que escolhem os nomes dos filhos pelos seus efeitos mimosos, espetaculares ou instagramáveis. E assim foi desde logo a criatura submetida à voraz correnteza das modas, cujo fluxo tende a ir do centro para as periferias começando por ser estilo e acabando a tornar-se foleirada. 
Temos então Alice e Álvaro, uma perfeita duALidade. 
As duas crianças entendem-se dessa forma desarmada, indefesa, que é um privilégio da infância fatalmente devorado pelas tristes experiências da vida. Serem irmãos por inteiro ou pela metade tanto lhes dá. Quando se conheceram, ela emudeceu ante a fragilidade daquele ser mínimo mas assumiu sem receios as competências que o pai lhe atribuiu nos cuidados do bebé e ele, depois da mama e do intestino aliviado, dormia na paz dos anjos à beirinha dela. Ninguém ficou surpreendido por ter sido Alice, trapalhona mas empenhada, quem lhe deu a primeira colher de sopa e por ter sido testemunha única do momento em que ele, agarrando-se ao móvel da televisão, conquistou a sua humana verticalidade. 
Por insistência da menina, trouxeram Álvaro à papelaria logo no primeiro mês de vida. Alice queria apresentar à mãe o novo brinquedo de carne e osso e contar-lhe do que era capaz de fazer com ele, de como era madura nos cuidados, indo ao ponto já de desvalorizar os próprios desejos em prol dos dele, como da vez em que lhe deu a lamber os dois dedinhos que acabara de mergulhar na taça de mousse de maracujá. Toda a gente gostou de Álvaro. Mal o pai entrou com ele, a emoção varreu para longe todos os ressentimentos que, por solidariedade com a rapariga, se alimentavam naquela papelaria. Acaso a criatura tinha culpa de ser fruto de um casamento com danos colaterais? Então, em menos de um ai era uma multidão a admirar o pequenito no seu ninho de folhos e bordados, a dormir o sono dos inocentes, exalando o aroma lácteo da pele e o perfume algodoado dos hidratantes para a infância. E aquela ternura imensa convocava todas as mães do mundo e apartava os homens, deixando para eles um sentimento de pequenez e excedente. Recuados junto ao expositor de revistas, o pai, o Marco do ginásio e dois ou três clientes admiravam, sem interferir, o círculo de mulheres que se fechava em torno da alcofinha. Gabi, a manicura sonsa, desfez-se toda em suspiros:
– Quero ter muitos destes.  
Estava dado o mote.
– Muitos? Se soubesses o dano que um único te pode causar... 
– Mas olhe que compensa pelas alegrias que dão. 
– Não há quem nos queira tanto como os filhos. Dá igual pra eles se somos feias ou bonitas.
– Eu cá se, fosse hoje, não sei se tinha tido os meus. Envelheci muito com as preocupações que me deram.
– Pedem-nos tudo, é verdade, mas também nos perdoam tanto! 
– E o que lhes perdoa a gente a eles? Também conta, não? 
– Caramba, dona Fatinha! E qual era o ganho de não perdoar? 
Mas a mãe da rapariga da papelaria não soube responder e abandonou o círculo. Sentou-se, mais a moinha dos seus ressentimentos, na banqueta de madeira detrás do balcão e, como a filha se demorava a adorar o menino esquecendo até a parte que a ele tocava de responsabilidade pelo seu sofrimento, murmurou, azeda:
– Não perdes a mania de cobiçar o que é das outras.