13.10.21

Um homem de sorte como, apesar de tudo, o senhor Pereira é, está sempre onde deve estar, ou seja, onde os acasos o favorecem. Pertence-lhe aquela hora exata em que o aguaceiro cessa ou o engarrafamento é desfeito ou o pão está mesmo a sair do forno ou a nota de cinquenta rodopia sem dono na calçada ou as mulheres precisam dos cuidados e atenções de um cavalheiro. Tudo isto são modestas conquistas sobre percalços miúdos, eu sei, mas vão servindo de remendo às desgraças maiores e ninguém nega que muitas vezes nos salvam os dias – senão mesmo a dignidade –  já que são indícios de que deus existe e acordou a segurar-nos a mão ou de que o destino pode estar a ganhar algum senso de justiça.
É, porém, sabido que por cada homem que ganha uma banana, há outro que escorrega na casca. E esta metáfora amanhada à pressa é quase retrato literal do que hoje venho contar. 
Encontro o senhor Pereira aqui onde todas as coisas deste blog acontecem e ele, evoluindo da mera cortesia para o sincero entusiasmo, vai-me perguntando das novidades. Mas basta o SUV da viúva dobrar a esquina e ele sobressalta-se, perde o foco e diz coisas de que nem tem consciência, porque toda a sua atenção está agora posta na viúva e eu não tenho como competir com ela nem faço questão pois em casos destes há mais ganho em assistir ao espetáculo do que em ser protagonista. Aselha como é hábito, insensível às subtilezas da máquina e às ratoeiras do espaço, ela estaciona a um metro do passeio enquanto vibra nas colunas do SUV aquela magnificência da música popular brasileira dos anos oitenta – eu quero ser sua canção, eu quero ser seu tom, me esfregar na sua boca, ser o seu batom, o sabonete que te alisa em baixo do chuveiro – e, verso a verso, eu comprovo que até na banda sonora o senhor Pereira beneficia das manhas do acaso.
Já de mãos nos bolsos, crescem-lhe as costas – e sabemos lá o que mais – acima das possibilidades, franze os lábios a conter as ganas de sorrir, prepara-se todo para saudar a viúva, é como um adolescente em estreia, aflito na gestão dos apetites. A viúva sai do carro e vem já a passar perto, com ar de quem aceita e agradece a lista inteira dos adjetivos que lhe atribuem. Mas no instante exato em que vira a cabeça a dizer como está o senhor? e joga todos os seus trunfos num olhar, qualquer coisa súbita e invisível lhe rasteira o passo. A partir daí, tudo em menos de um ai: falha um pé, a seguir o outro, a viúva tomba para o lado, solta um gritinho e o senhor Pereira lança-se com a determinação de um herói para evitar que o esbardalhanço se complete no passeio imundo, onde qualquer um deixa pegadas, cuspidelas, beatas e dejetos. Dada a urgência do momento, as mãos do senhor Pereira acodem ao corpo dela de todas as maneiras e ângulos possíveis, não há tempo para escolher por onde o amparam e eu garanto, por ter visto, que estiveram em todas as partes onde a sua imaginação já derivou. Como condenar? O pudor até pode ser aliado da civilização mas é empecilho à sobrevivência. E, de resto, o saldo positivo atesta a eficiência do método: certamente o senhor Pereira tocou onde não devia mas a verdade é que os joelhos da viúva não tocaram no chão. 
Quando recupera a pose, ela ajeita os cabelos e desvaloriza a inconveniência: ora essa, muito obrigada, senhor Pereira, mas não foi nada, não era preciso. Já sabemos que não se atrapalha com pouco e, no que às coisas do corpo diz respeito, pende mais para o orgulho do que para a vergonha. Quem se lembra de quando a borda da minissaia ficou presa no cós e ela desceu a rua toda com o vento a possuí-la por trás, um fio de renda na cava das nádegas, a atitude superior de uma rainha? 
O senhor Pereira tem o sorriso todo escancarado. Caiu-lhe a viúva nas mãos – literalmente – sem que o possam culpar e não a quer deixar fugir tão cedo, então segura-a pelos braços e insiste em saber se está bem, se não se magoou, se tem já os pés bem assentes em terra. Quer que a leve a casa, minha senhora? Tomara ele! E muito estranho andaria o mundo se, entre todos os homens que da praceta à rotunda a desejam, a viúva favorecesse justamente o senhor Pereira. Apesar de tudo, a sorte é um bem racionado em conta-gotas e por isso é dito que não se pode abusar dela. Do que por acidente ele provou hoje, o mais certo é não voltar a provar.